Se Antero de Quental (Antero Taquínio de Quental, líder estudantil universitário e um dos destaques na literatura portuguesa da segunda metade do século XIX) estivesse vivo presenciasse um episódio ocorrido em uma aula de literatura, especificamente quando um de seus poemas estava sendo analisado, penso que ele sentiria extrema vergonha.
Entendamos melhor o contexto histórico de Antero de Quental para depois entrarmos na proposta dessa reflexão.
Jovens estudantes da universidade de Coimbra (que fica em Coimbra, Portugal), já se interessavam por novas correntes filosóficas, políticas e artísticas que surgiam pela Europa, principalmente na Alemanha, Inglaterra e França, e começaram a defendê-las no meio acadêmico. Um deles, Antero de Quental, fundou a Sociedade do Raio em 1861 com aproximadamente 200 integrantes. Em 1865, Feliciano de Castilho escreveu, em represália, uma carta-posfácio ao editor do livro Poemas da Mocidade, de Pinheiro Chagas, na qual fazia irônica referência aos jovens Antero de Quental e outros, defensores da nova arte, dizendo que lhes faltava bom senso e bom gosto. Antero de Quental revidou ao publicar um folheto que atacava o velho mestre Feliciano de Castilho. Em suma, ao longo da duração da Questão Coimbrã, houve um embate ideológico por meio de publicações de textos que, por um lado, defendia a tradição existente; por outro lado, a renovação, a mudança, o novo.
Em 1868, foram organizadas as Conferências Democráticas do Cassino Lisboense. Nessas palestras, se objetivava a discussão pública de assuntos artísticos, filosóficos e científicos de interesse para os intelectuais da época. Contudo, quando a sexta palestra iria acontecer, o Estado português mandou interromper as conferências por entender que tais palestras propagavam “doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado; e sendo certo que tais fatos, além de constituírem um abuso do direito de reunião, ofendem clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia, que os poderes públicos tem a seu cargo manter e fazer respeitar”.
Certo ou errado, Antero de Quental e o seu grupo acreditava em mudanças e lutaram por ela.
Na arte, Antero produziu sonetos que provocava ao leitor no sentido de mudança, de luta. Conheçamos um desses sonetos.
A um poeta
(surge et ambula)
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
No soneto, podemos dividi-lo em duas imagens: a do eu-lírico e a quem o eu-lírico se dirige.
Sobre o eu-lírico – é alguém que deseja mudanças e se vale dos verbos no imperativo em uma sequência gradativa no início da segunda, terceira e quarta estrofes (acorda, escuta, ergue-te) para despertar o interlocutor. Explicando melhor:
Acorda – Se o Sol espanta as larvas que existem nos túmulos, o interlocutor será esse Sol que está faltando para surgir um novo mundo e espantar as larvas que representam as coisas pelas quais se desejam remover dos túmulos, nossa sociedade, nosso mundo.
Escuta – Os irmãos do interlocutor estão entoando canções. Mas não são quaisquer canções. São cantos de guerra. Se o interlocutor prestar atenção no que está sendo cantado, certamente ele participará desse canto e participará do processo de mudança junto aos demais que cantam. Dessa forma, as larvas serão espantadas.
Ergue-te – O eu-lírico chama o interlocutor de Soldado do Futuro, alguém que empunhará a espada e participará da luta por mudanças. Para que interlocutor parta para o embate, ele primeiro acordou para depois escutar o que estava sendo proposto e por fim, levantar-se e partir para a peleja.
Sobre o interlocutor – é alguém que está na indiferença, tanto faz como tanto fez. A imagem que o eu-lírico usa para explicar essa indiferença está em toda a primeira estrofe: alguém que está a dormir serenamente à sombra de uma grande árvore milenar como se fosse um levita (sacerdote) em frente ao altar em completa atitude de contemplação. E para transformar a indiferença em ação, as ações de acordar, ouvir e erguer são propostas nas três estrofes finais do poema, já explicadas acima.
E sobre o incidente que envergonharia o autor desse poema, o português Antero de Quental, se ele estivesse vivo hoje? Explico.
Imagine o poeta Antero de Quental a presenciar a seguinte situação: Um professor estava aplicando a uma das suas turmas exatamente o poema acima em uma atividade de análise escrita quando um grupo de alunos de uma outra turma pediu ao professor para dar um aviso sobre um evento que ocorreria na manhã seguinte na Esplanada dos Ministérios contra a corrupção e a impunidade. Considerando a importância do recado, foi permitido o aviso.
Em relação aos que ouviram o recado, muitos debocharam, acharam graça, menosprezaram o esforço daqueles que se propunham a lutar contra a corrupção, como se não acreditassem que poderia ocorrer uma reviravolta na nossa situação política.
Antero de Quental sentiria extrema vergonha daqueles que ouviram o recado e ainda menosprezaram aos que propunham mudanças.
E o paralelo entre Antero de Quental e o episódio na sala de aula, além da vergonha?
É simples: o eu-lírico equivale aos alunos que deram o recado sobre o evento na Esplanada da manhã seguinte; como o Sol que espanta as larvas tumulares, esses alunos querem espantar as larvas da corrução e da impunidade. O interlocutor (especificamente aqueles que estão indiferentes à mudança), são aqueles que ouviram o recado dado e menosprezaram a proposta de mudança, como se estivessem satisfeitos com as larvas que permeiam os túmulos.
E você, leitor, como você se avalia em relação ao futuro, não só o político, mas ao futuro em geral? Temos ou não temos condições de promover mudanças, quer seja numa manifestação pública, quer seja individualmente quando se diz a verdade? Você está satisfeito com as larvas que povoam nossas instituições sociais, políticas e religiosas?
Se ninguém acreditasse em mudanças, a mulher votaria hoje? Se ninguém acreditasse em mudanças, teríamos um presidente retirado do seu cargo? Se ninguém acreditasse em mudanças, teríamos hoje o passe-livre estudantil no DF? Quantas larvas foram removidas, não é verdade?
Se você está satisfeito com as larvas que estão ao seu redor, continue agindo como alguém que esteja deitado, dormindo em um espírito sereno à sombra de uma grande árvore.
Caso não, faça como o Sol: espante as larvas. Acorda, Escuta e Ergue-te. Parta para a luta.
Fernando Fernandes