terça-feira, 10 de outubro de 2017

Escadas

     Segundo o narrador de Ica e Tiãozinho (Um romance riscado à bala), da autoria de José Amaro da Silva e publicado em 2017 na cidade de Três Marias-MG, 

     ... aquela mulher sofredora, que lutou a vida inteira, foi criança sem nunca ter tido infância, passou pelas inconstâncias da adolescência, exalou perfume e sensualidade na sua juventude, construiu uma numerosa família e, agora, já mulher madura com a aparência desfeita pelo tempo, com as marcas de sofrimento e injustiças, se vê de pé, frente a frente com o resumo de toda a sua vida: a realização de seu sonho mais intrínseco, um banheiro com pia, vaso e chuveiro.

     Esse foi seu sonho, realizado sete antes do seu falecimento:

     ... Aqui no Barreiro, com os filhos que sobreviveram às mazelas da vida, já crescidos, um para cada lado, Ica, doente, é levada às pressas ao hospital São Francisco. Permanece internada por três dias. Retorna para casa no dia nove de outubro. A mulher que somente pôde ter um banheiro em casa, após ter dado à luz a 18 filhos, falece às dezoito horas, do mesmo dia, aos 52 anos, fraca, triste, decepcionada com tudo, e solitária ... 

     Tiãozinho, viúvo por não ter mais sua Ica por companhia, se lembra das palavras da mãe antes de sair de casa sobre as três coisas que ele deveria procurar e que, agora,  sabe quais são:

     ... Esfregou os olhos, viu os cristais que formavam em sua visão, pensou nas cores do arco-íris, então desvendou o enigma: o amor ela havia encontrado quando encontrou Ica; a verdade foi revelada a ele quando ouviu o texto bíblico "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará"; a terceira que sempre procurou foi a justiça. Agora ele percebe que não foi pelo diamante que procurou por toda a vida, mas, sim pela justiça, E isso o decepcionou profundamente, pois em sua vida só encontrou injustiça.

     Sinceramente, não importa se Ica e Tiãozinho existiram apenas na imaginação do autor do livro ou se  realmente viveram em Barreiro Grande; se de seus 18 filhos, todos sobreviveram ao parto, se morreram antes de nascer e se algum deles foi assassinado já adulto; se o casal tinha de encarar os 28 degraus de barro, feitos no enxadão, entre sua antiga casa e a margem do rio São Francisco, multiplicado pela quantidade de vezes desse sobe e desce ao longo da vida para lavar vasilhas, para pescar, tomar banho etc. Na história do casal, há outras escadas: a ditadura militar, a opressão contra os mais pobres em que a bala era o principal instrumento de ação, a perseguição familiar, a corrupção policial.
     Nossa vida é uma escada com vinte e oito degraus esculpidos na terra compactada. Para acessar a água, tomar banho e buscar o sustento financeiro, o casal precisava  encará-la. Imagine essa escada após um temporal? Quantos escorregões essa família sofreu? Com ou sem decepções o casal sonhou, persistiu, lutou, venceu. Como se caracteriza a escada da sua vida que necessita ser transposta para você chegar onde você precisa?

Fernando Fernandes
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