quarta-feira, 30 de junho de 2021

          


         Compartilho com vocês dois poemas da autoria de Carlos Drummond de Andrade e uma sugestão de diálogo entre eles. 

O primeiro poema, bastante conhecido, pertence à obra ‘Alguma Poesia’ (1930). Já o segundo poema, ele pertence à obra ‘Sentimento do Mundo’ (1940), 




No meio do caminho

(Carlos Drummond de Andrade)


No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.



A noite dissolve os homens

(Carlos Drummond de Andrade)


A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos.

E nem tão pouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite espalhou o medo

e a total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperança… Os suspiros

acusam a presença negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho

na noite. A noite é mortal,

completa, sem reticências,

a noite dissolve os homens,

diz que é inútil sofrer,

a noite dissolve as pátrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo…

O mundo não tem remédio…

Os suicidas tinham razão.


Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se não modelaram

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,

os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocência, um perdão simples e macio…

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.



Apesar de dez anos de diferença entre a publicação dos poemas que você acabou de ler, o segundo poema exemplifica o que o primeiro poema apenas denominou de pedra.

No primeiro poema, não há pistas seguras para caracterizar o objeto ou mesmo que tipo de marcas psicológicas permaneceram no eu lírico. Só sabemos que havia uma pedra no caminho e que este instante nunca mais foi deletado da sua mente. A pedra era real ou metafórica? As marcas deixadas no eu lírico foram lembranças positivas ou negativas? As lembranças representaram  dificuldade superada ou  perda irreparável? As recordações deixaram também traumas ou ficaram apenas na lembranças? 

O segundo poema exemplifica o foi apresentado de forma genérica no primeiro poema. Na primeira parte, a desesperança metaforizada pela noite que cai, a ponto de o eu lírico afirmar que ‘a noite anoiteceu tudo… / O mundo não tem remédio… / Os suicidas tinham razão. 

A existência de uma grande pedra que praticamente derrubou o eu lírico de forma cabal transformou-se em momento de superação. A voz poética não ficou prostrada. Pelo contrário. Assim como todo o amanhecer se segue ao período noturno, a aurora se seguiu a aquela noite.

Sim! O eu lírico não se entregou. Por mais que a noite estivesse escura, ele conseguiu divisar a aurora, ainda que tímida. E que a luz desse novo dia seria capaz de expulsar a treva noturna, a desesperança, o egoísmo, a ausência de carinho, e a dissolvição dos homens.

Nossas vidas são assim. Vivemos a alternância entre noite e dia,  desesperança e otimismo, derrotas e vitórias. descrença e fé, perdas e ganhos.

Que as pedras que surjam na nossa caminhada não sejam capazes de derrotar a cada um de nós.

Fernando Fernandes


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