terça-feira, 10 de novembro de 2015

Arcadismo e Bocage

               Nessa postagem, vamos conhecer uma pequena parte da obra do português Manoel Maria Barbosa du Bocage (Elmano Sadino). Não temos a pretensão de esgotar todo o assunto, entretanto, trabalharemos duas vertentes desse autor: o seu lado árcade tradicional e o seu lado pré-romântico.
                O que chamamos de árcade tradicional equivale à visão adotada pela arte do século XVIII, em que a verdadeira felicidade está no campo (locus amoenos associado ao carpe diem) em oposição à cidade (locus horrendus), local de experiências que não trouxeram a necessária paz. Ao optar pelo campo, o eu-lírico abre mão do conforto e do luxo da cidade (nesse momento, tais prazeres se tornam supérfluos – inutiliza truncat) e busca na simplicade (aurea mediocritas) a verdadeira felicidade. A citação a elementos da mitologia greco-romana também é característica contemplada pelo Arcadismo uma vez que o referencial cultural é o clássico (renascentista ou da Grécia e Roma antigas).
                Quanto ao pré-romantismo de Bocage, é uma maior valorização e intensificação do seu sentimento interior, que se amplia: do simples desejo de ser feliz em ambiente campestre ou bucólico para um maior egocentrismo em relação ao que sente.
                   Conheçamos três poemas de Bocage. E breves comentários sobre cada um.
                Partamos, então, para a prática.

Olha, Marilia, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vês como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira;
Ora nas folhas a abelhinha para.
Ora nos ares, sussurrando, gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah!, tudo o que vês se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.
               
                O poema acima, formalmente enquadrado como soneto italiano com rimas ABBA / ABBA / CDC / DCD e versos decassílabos ilustra a fase árcade tradicional do autor.
                Há clara evidência do bucolismo pela descrição de um belo cenário próximo ao rio Tejo (em Portugal) onde inúmeras borboletas coloridas voam entre as flores, um rouxinol  entoa seu belo campo e a abelha  brinca ora nas folhas, ora nos ares, tudo ao som das flautas dos pastores. O cenário (locus amoenos) é  perfeito para desfrutar o carpe diem.
                Complementando a descrição desse cenário, há Zéfiros (na mitologia grega, vento do Oeste) brincando entre as flores e os Amores trocando beijos (com letra maiúscula, vai muito além do que podemos imaginar, pois depende do que o eu lírico contempla naquele momento, associado a esses beijos) remetem ao cultural greco-romano.
                Contudo, esse belo locus amoenos se transforma em locus horrendus simplesmente pela ausência da amada no cenário, pois o eu lírico, na sua imaginação, dirige suas palavras a Marilia.
                Nossa vida é assim. Há locais agradáveis e locais desagradáveis. Subjetivamente falando, o que me agrada pode desagradar você em termos de lugar. Entretanto, a visão árcade de felicidade projeta um ideal de felicidade junto à natureza em companhia da amada.
                 Você concorda com a visão árcade de felicidade? 

x-x-x

Ser prole de varões assinalados,
Que nas asas da fama e da vitória
Ao templo foram da imortal memória
Pendurar mil troféus ensanguentados;

Ler seus nomes nas páginas gravados
De alta epopeia, de elegante história,
Não, não vos serve de esplendor, de glória,
Almas soberbas, corações inchados!

Ouvir com dor o miserável grito
De inocentes, que um bárbaro molesta,
Prezar o sábio, consolar o aflito;

Prender teus voos, Ambição funesta,
Ter amor à virtude, ódio ao delito,
«Das almas grandes a nobreza  é esta».


                Esse outro poema, também formalmente enquadrado como soneto italiano com rimas ABBA / ABBA / CDC / DCD e versos decassílabos, traz uma temática menos fácil de ser reconhecida como árcade tradicional.
                Que tema interessante é discutido nesse segundo exemplo de poesia! Você já parou para refletir sobre o verdadeiro conceito de herói? Caso negativo, esse poema pode ajudá-lo.
                O eu lírico apresenta duas concepções de herói e manifesta claramente sua preferência por uma delas e, rejeição à outra.
                A primeira refere-se àquele tipo de herói relacionado à fama, ao poder, à conquista, à capacidade, à posse, à tirania, ao despotismo, ao absolutismo, etc. No poema, são caracterizados como almas soberbas, corações inchados.
                A segunda, bem diferente da anterior, poderia ser traduzida pelo verso bíblico alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram (Romanos 12, 15). Os dois tercetos afirmam exatamente isso: ser capaz de estimar, respeitar, honrar o sábio (metaforicamente, quem merece honra) e consolar  por compreender a dor do outro.
                Esse poema, com cerca de 300 anos de existência, chama nossa atenção para nossas ações. Que tipo de pessoa você pretende ser? Como você gostaria de ser lembrado? O que vão falar sobre você após sua partida desse mundo?
                O eu lírico deu a resposta dele no último verso do poema.
                A sua resposta se alinha ao eu lírico, ou não?

x-x-x

Oh retrato da morte, oh noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
Des meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.



                Esse terceiro poema, também formalmente enquadrado como soneto italiano com rimas ABBA / ABBA / CDC / DCD e versos decassílabos, traz uma temática distante do Arcadismo. Exemplifica a segunda fase do autor, chamada de fase pré-romântica. Nela, os sentimentos ficam mais intensos, mais profundos.
                A morte é vista pelo eu lírico como companheira antiga e silenciosa do sofrimento dele. Essa interação é tão forte que deseja cobrir-se com seu manto, o manto da morte.
                Nos dois tercetos o eu lírico implora, clama, rasga seu coração, anseia pelo  atendimento dos seus clamores em associar-se à própria morte, hiperônimo de  cortesãos da escuridade, fantasmas vagos, mochos piadores a fim de saciar seu coração.
                Que tipo de sentimentos uma pessoa possui quando enxerga na morte a única e verdadeira solução para seus problemas? O poema ajuda nessa resposta. Preste bastante atenção no vocabulário empregado (morte, escuridão, pranto, desgosto, cruel, escuridade, etc) e o que irá fartar o coração do eu lírico.

                Que coisas você tem buscado para saciar seu coração?

x-x-x



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