sábado, 14 de novembro de 2015

Arcadismo em Basílio da Gama e Santa Rita Durão

         Nas postagens anteriores sobre os destaques na literatura árcade portuguesa e brasileira, prendemo-nos na maior parte à lírica. Nesse documento, falaremos sobre a épica (longa narrativa em versos) árcade produzida por dois brasileiros.
               
BASÍLIO DA GAMA        
                O mineiro Basílio da Gama (pseudônimo Termindo Sipílio) foi jesuíta em um momento em que o ensino religioso foi proibido nos territórios portugueses (Portugal e Brasil). Viveu em Portugal e depois em Roma, conseguindo ingressar em uma das mais importantes agremiações literárias: a Árcádia Romana.
                O Uraguai, primeira grande epopeia brasileira, trata da luta de portugueses e espanhóis contra os índios e jesuítas que, instalados nas missões jesuíticas do atual Rio Grande do Sul, não queriam aceitar as decisões do Tratado de Madri, que envolvia permuta de terra entre portugueses e espanhóis. Escrita em cinco cantos ou capítulos, versos decassílabos sem rimas e sem a divisão tradicional por estrofes.
                A forma adotada pelo autor em valorizar o índio e a natureza brasileiras, fazem da obra um prenúncio das tendências do modelo literário que sucederia ao Arcadismo: o Romantismo.
                Conheçamos um trecho da obra, em que a índia Lindoia foge em função de um casamento forçado, prestes a se realizar, com o Baldeta, filho do Jesuíta Balda. Ela prefere morrer a se entregar sem amor a outra pessoa. Já haviam assassinado o seu amado, o índio Cacambo. Na floresta, é procurada por outros índios.
                Na leitura, observe como há uma relação entre o ambiente descrito (a fonte rouca, o tronco do fúnebre cipreste, a sombra melancólica, a serpente) e o sentimento da índia.

(...)
Entram enfim na mais remota, e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins, e rosas.
Este lugar delicioso, e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva, e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e se apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira, e o temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca, e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açoita o campo coa ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia
Cheios de morte; e muda aquela língua
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece
Tanto era bela no seu rosto a morte!
(...)

                Na leitura feita:

a) Lindoia foi encontrada ainda viva? Caso positivo, qual foi o desfecho em relação a índia?



JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO
                Santa Rita Durão, mineiro, também estudou na escola de jesuítas e tornou-se professor de Teologia.
                Caramuru (filho do trovão) trata das aventuras tanto históricas quanto lendárias do náufrago português Diogo Álvares Correia no litoral baião, no século XVI. O contato com os indígenas rende a Diogo ser alvo de disputa amorosa por índias da tribo, especialmente Moema. Seguindo o modelo de Camões quando de Os Lusíadas, Caramuru possui a mesma estrutura: dez cantos, versos decassílabos e rimas ABABABCC.
                Conheçamos um trecho da obra em que Diogo está de partida para Portugal e Moema, desesperada, nada atrás do barco tentando pegar carona.
                Na leitura, descubra se Moema consegue ou não alcançar Diogo.

Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo, assombrada;
E ignorando a ocasião da estranha empresa,
Pasma da turba feminil, que nada.
Uma que às mais parece em gentileza,
Não vinha menos bela, do que irada;
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau se apega ao leme.

Bárbaro (a bela diz) tigre e não homem...
Porém o tigre, por cruel que brame,
Acha forças no amor, que enfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que eu te ame.
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mas pagar tanto amor com tédio e asco...
Ah! Que corisco és tu... raio... penhasco!

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me ofenderas a escutar-me ativo,
Que é favor, dado a tempo, um desengano:
Porém deixando o coração cativo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano,
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua morte?

Tão dura ingratidão menos sentira
E esse fado cruel doce me fora,
Se o meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar senhora
A vil Paraguaçu, que, sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia.

Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar, moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incida
A um ai somente, com que aos meus respondas:
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;
Dispara sobre mim o teu cruel raio...
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com a mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar, que irado freme
Tornando a aparecer desde o profundo,
- Ah Diogo cruel! - disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se na água.


                Aproveitemos a oportunidade para comparar os dois exemplos literários.

a) Qual dos dois fragmentos lhe parece mais dramático, mais intenso, em termos dos episódios apresentados?

b) Em qual deles a figura do índio parece mais integrado à natureza?

                Nessa e em outras postagens que envolvem o Barroco e o Arcadismo, agradeço a inestimável ajuda de  livros didáticos utilizados no Ensino Médio, além de inúmeras citações da internet: Português Linguagens, volume 1 (Willian Cereja e Thereza Magalhães), Arte Literária – Portugal e Brasil (Clenir B. de Oliveira), Palavra e Arte (Tania Pellegrini e Marina Ferrreira), Português e Português: contexto, interlocução e sentido (Maria Abaurre, Marcela Pontara, Tatiana Fadel, Maria Abaurre) e Novas Palavras (Emilia Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio). sem os quais eu teria de reler  as duas épicas especificamente para propor uma linha didática para essa postagem.


Fernando Fernandes

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