Nas postagens anteriores sobre os
destaques na literatura árcade portuguesa e brasileira, prendemo-nos na maior
parte à lírica. Nesse documento, falaremos sobre a épica (longa narrativa em
versos) árcade produzida por dois brasileiros.
BASÍLIO DA GAMA
O
mineiro Basílio da Gama (pseudônimo Termindo Sipílio) foi jesuíta em um momento em que o ensino religioso foi
proibido nos territórios portugueses (Portugal e Brasil). Viveu em Portugal e
depois em Roma, conseguindo ingressar em uma das mais importantes agremiações literárias:
a Árcádia Romana.
O Uraguai, primeira grande epopeia
brasileira, trata da luta de portugueses e espanhóis contra os índios e
jesuítas que, instalados nas missões jesuíticas do atual Rio Grande do Sul, não
queriam aceitar as decisões do Tratado de Madri, que envolvia permuta de terra entre
portugueses e espanhóis. Escrita em cinco cantos ou capítulos, versos
decassílabos sem rimas e sem a divisão tradicional por estrofes.
A
forma adotada pelo autor em valorizar o índio e a natureza brasileiras, fazem
da obra um prenúncio das tendências do modelo literário que sucederia ao
Arcadismo: o Romantismo.
Conheçamos
um trecho da obra, em que a índia Lindoia foge em função de um casamento
forçado, prestes a se realizar, com o Baldeta, filho do Jesuíta Balda. Ela
prefere morrer a se entregar sem amor a outra pessoa. Já haviam assassinado o
seu amado, o índio Cacambo. Na floresta, é procurada por outros índios.
Na
leitura, observe como há uma relação entre o ambiente descrito (a fonte rouca,
o tronco do fúnebre cipreste, a sombra melancólica, a serpente) e o sentimento
da índia.
(...)
Entram enfim na mais
remota, e interna
Parte do antigo
bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma
lapa cavernosa
Cobre uma rouca
fonte, que murmura,
Curva latada de
jasmins, e rosas.
Este lugar delicioso,
e triste,
Cansada de viver,
tinha escolhido
Para morrer a mísera
Lindóia.
Lá reclinada, como
que dormia,
Na branda relva, e
nas mimosas flores,
Tinha a face na mão,
e a mão no tronco
De um fúnebre
cipreste, que espalhava
Melancólica sombra.
Mais de perto
Descobrem que se
enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe
passeia, e cinge
Pescoço, e braços, e
lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim
sobressaltados,
E param cheios de
temor ao longe;
E nem se atrevem a
chamá-la, e temem
Que desperte
assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e se apresse
no fugir a morte.
Porém o destro
Caitutu, que treme
Do perigo da irmã,
sem mais demora
Dobrou as pontas do
arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e
vacilou três vezes
Entre a ira, e o
temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a
aguda seta,
Que toca o peito de
Lindóia, e fere
A serpente na testa,
e a boca, e os dentes
Deixou cravados no
vizinho tronco.
Açoita o campo coa
ligeira cauda
O irado monstro, e em
tortuosos giros
Se enrosca no
cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o
lívido veneno.
Leva nos braços a
infeliz Lindóia
O desgraçado irmão,
que ao despertá-la
Conhece, com que dor
no frio rosto
Os sinais do veneno,
e vê ferido
Pelo dente sutil o
brando peito.
Os olhos, em que Amor
reinava, um dia
Cheios de morte; e
muda aquela língua
Que ao surdo vento e
aos ecos tantas vezes
Contou a larga
história de seus males.
Nos olhos Caitutu não
sofre o pranto,
E rompe em
profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da
fronteira gruta
De sua mão já trêmula
gravado
O alheio crime e a
voluntária morte.
E por todas as partes
repetido
O suspirado nome de
Cacambo.
Inda conserva o pálido
semblante
Um não sei quê de
magoado e triste,
Que os corações mais
duros enternece
Tanto era bela no seu
rosto a morte!
(...)
Na
leitura feita:
a) Lindoia foi
encontrada ainda viva? Caso positivo, qual foi o desfecho em relação a índia?
JOSÉ DE SANTA RITA
DURÃO
Santa Rita
Durão, mineiro, também estudou na escola de jesuítas e tornou-se professor de
Teologia.
Caramuru (filho do trovão) trata das
aventuras tanto históricas quanto lendárias do náufrago português Diogo Álvares
Correia no litoral baião, no século XVI. O contato com os indígenas rende a
Diogo ser alvo de disputa amorosa por índias da tribo, especialmente Moema.
Seguindo o modelo de Camões quando de Os Lusíadas, Caramuru possui a mesma
estrutura: dez cantos, versos decassílabos e rimas ABABABCC.
Conheçamos
um trecho da obra em que Diogo está de partida para Portugal e Moema,
desesperada, nada atrás do barco tentando pegar carona.
Na
leitura, descubra se Moema consegue ou não alcançar Diogo.
Copiosa multidão da
nau francesa
Corre a ver o
espetáculo, assombrada;
E ignorando a ocasião
da estranha empresa,
Pasma da turba
feminil, que nada.
Uma que às mais
parece em gentileza,
Não vinha menos bela,
do que irada;
Era Moema, que de
inveja geme,
E já vizinha à nau se
apega ao leme.
Bárbaro (a bela diz)
tigre e não homem...
Porém o tigre, por
cruel que brame,
Acha forças no amor,
que enfim o domem;
Só a ti não domou,
por mais que eu te ame.
Fúrias, raios,
coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis
aquele infame?
Mas pagar tanto amor
com tédio e asco...
Ah! Que corisco és
tu... raio... penhasco!
Bem puderas, cruel,
ter sido esquivo,
Quando eu a fé rendia
ao teu engano;
Nem me ofenderas a
escutar-me ativo,
Que é favor, dado a
tempo, um desengano:
Porém deixando o
coração cativo
Com fazer-te a meus
rogos sempre humano,
Fugiste-me, traidor,
e desta sorte
Paga meu fino amor
tão crua morte?
Tão dura ingratidão
menos sentira
E esse fado cruel
doce me fora,
Se o meu despeito
triunfar não vira
Essa indigna, essa
infame, essa traidora:
Por serva, por
escrava te seguira,
Se não temera de
chamar senhora
A vil Paraguaçu, que,
sem que o creia,
Sobre ser-me
inferior, é néscia e feia.
Enfim, tens coração
de ver-me aflita,
Flutuar, moribunda
entre estas ondas;
Nem o passado amor
teu peito incida
A um ai somente, com
que aos meus respondas:
Bárbaro, se esta fé
teu peito irrita,
(Disse, vendo-o
fugir) ah não te escondas;
Dispara sobre mim o
teu cruel raio...
E indo a dizer o
mais, cai num desmaio.
Perde o lume dos
olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o
aspecto moribundo;
Com a mão já sem
vigor, soltando o leme,
Entre as salsas
escumas desce ao fundo:
Mas na onda do mar,
que irado freme
Tornando a aparecer
desde o profundo,
- Ah Diogo cruel! -
disse com mágoa,
E sem mais vista ser,
sorveu-se na água.
Aproveitemos
a oportunidade para comparar os dois exemplos literários.
a) Qual dos dois fragmentos lhe parece mais dramático, mais
intenso, em termos dos episódios apresentados?
b) Em qual deles a figura do índio parece mais integrado à
natureza?
Nessa e em outras postagens que envolvem o Barroco e o Arcadismo, agradeço a inestimável ajuda de livros didáticos utilizados no
Ensino Médio, além de inúmeras citações da internet: Português Linguagens, volume 1 (Willian Cereja e Thereza
Magalhães), Arte Literária – Portugal e Brasil (Clenir B. de Oliveira), Palavra e Arte (Tania Pellegrini e Marina Ferrreira), Português e Português: contexto, interlocução e sentido (Maria Abaurre, Marcela Pontara, Tatiana Fadel, Maria Abaurre) e Novas Palavras (Emilia Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio). sem os
quais eu teria de reler as duas épicas
especificamente para propor uma linha didática para essa postagem.
Fernando Fernandes
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