sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Arcadismo e Tomás Antônio Gonzaga

            Na postagem anterior, conhecemos um pouco da obra do árcade português Bocage e discutimos um pouco sobre as características literárias do Arcadismo, além de conhecer três poemas da sua autoria.
                  Hoje,  falaremos um pouco sobre Tomás Antônio Gonzaga.
                Nascido em Portugal e formado em Direito na cidade de Coimbra, no Brasil exerceu suas atividades profissionais. Por conta da sua atividade artística e sua militância política a favor da independência  brasileira (Inconfidência Mineira), foi preso e deportado para Moçambique onde faleceu em 1810, aos 66 anos de idade.
                Sua atuação literária abrangeu duas grandes vertentes: a lírica e a satírica.
                A primeira vertente, a lírica, está representada pela obra Marilia de Dirceu. Nessa lírica, as principais temáticas árcades são representadas na primeira parte desse trabalho; na segunda parte, o eu lírico adota um tom mais trágico em função da sua atual situação, preso e incerto quanto ao seu futuro.
                A segunda vertente está representada pela obra Cartas Chilenas. Nesse trabalho, o autor se vale do fingimento poético: Critilo (o remetente) dirige suas palavras a Doroteu (destinatário) que vivia supostamente na Espanha para expor suas críticas ao governo do Fanfarrão Minésio (o assunto das cartas). Na verdade, essas cartas circularam anônimas e são denúncias feitas por Tomás A. Gonzaga em relação ao governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses.
                Feitas as considerações teóricas, vamos à prática.

Marília de Dirceu – fase árcade tradicional – LIRA XVIII


Não vês aquele velho respeitável,
Que, à muleta encostado,
Apenas mal se move e mal se arrasta?
Oh! Quanto estrago não lhe fez o tempo,
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze gasta!

Enrugaram-se as faces e perderam
Seus olhos a viveza:
Voltou-se o seu cabelo em branca neve
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
Não tem uma beleza
Das belezas que teve.

Assim também serei, minha Marília,
Daqui a poucos anos,
Que o ímpio tempo para todos corre.
Os dentes cairão e os meus cabelos.
Ah! Sentirei os danos,
Que evita só quem morre.

Mas sempre passarei uma velhice
Muito menos penosa.
Não trarei a muleta carregada,
Descansarei o já vergado corpo
Na tua mão piedosa,
Na tua mão nevada.

As frias tardes, em que negra nuvem
Os chuveiros não lance,
Irei contigo ao prado florescente:
Aqui me buscarás um sítio ameno,
Onde os membros descanse,
E ao branco Sol me aquente.

Apenas me sentar, então, movendo
Os olhos por aquela
Vistosa parte, que ficar fronteira,
Apontando direi: Ali falamos,
Ali, ó minha bela,
Te vi vez primeira.

Verterão os meus olhos duas fontes,
Nascidas de alegria;
Farão meus olhos ternos outro tanto;
Então darei, Marília, frios beijos
Na mão formosa e pia,
Que me limpar o pranto.

Assim irá, Marília, docemente
Meu corpo suportando
Do tempo desumano a dura guerra.
Contente morrerei, por ser Marília
Quem, sentida, chorando
Meus baços olhos cerra.



Vocabulário:
Arrebatado: Levado pelos ares
Baços: Embaçados, turvos
Cerrar: Fechar
Ímpio: Sem compaixão, cruel
Pia: Piedosa
Prado: Campina
Sítio: Um local qualquer, quando não se quer identificar
Vergado: Curvado
Verterão: Derramarão
Vistosa: Garbosa, o que se destaca




                Essa lira é composta por oito estrofes com seis versos cada. Em cada estrofe, versos com medida nova (decassílabos), medida velha (versos hexassílabos) e rimas ABCDBC.
                Tendo como ponto de partida que a vida é breve (sentido físico e psicológico)  e que um dia, caso não morramos enquanto somos jovens viveremos a terceira idade, o eu lírico inicia sua reflexão na observação de um idoso e a constatação de que também será assim, com todas as desvantagens de um corpo já cansado.
                Entretanto, os prejuízos causados pela velhice serão diminuídos pelo fato do eu lírico projetar nesse futuro  a companhia de  Marilia  para viver determinados momentos tais como descansar seu vergado corpo nas mão dela (4ª estrofe); irem novamente ao campo onde, pela primeira vez eles se encontraram e se beijaram (5ª,  6ª e 7ª estrofes) e a certeza de que ele morrerá ao lado dela a ponto de ser ela quem fechará os olhos dele (8ª estrofe).
                Em uma sociedade em que o sentido de fluidez e o descarte se fazem tão presentes na mídia e nos nossos relacionamentos (namoro, noivado, casamento, etc) a impressão que se tem que podemos trocar de pessoa assim como trocamos de objetos. Se um celular mais moderno é lançado, rapidamente descartamos o atual a fim de acompanharmos a nova tecnologia; se meu (minha) parceiro(a) não me agrada mais, imediatamente buscamos uma outra pessoa.
                O fragmento lido mostra o contrário. Revela um casal que se ama desde a juventude e que pretende permanecer juntos até que a morte o separe, lá na velhice.
                A reflexão que deixo é a seguinte. Como eu e você encaramos nossos relacionamentos? Somos capazes de ceder para que a convivência perdure ou nossa razão é tão forte a ponto de não ser possível mais esse convívio?

Marília de Dirceu – fase  sentimental – LIRA XXXIII

Morri, ó minha Bela:
Não foi a Parca impia,
Que na tremenda roca,
Sem Ter descanso, fia;
Não foi, digo, não foi a Morte feia
Quem o ferro moveu, e abriu no peito
A palpitante veia.

Eu, Marília, respiro;
Mas o mal, que suporto,
É tão tirano, e forte,
Que já me dou por morto:
A insolente calúnia depravada
Ergueu-se contra mim, vibrou da língua
A venenosa espada.

Inda, ó Bela, não vejo
Cadafalso enlutado,
Braço de ferro armado;
Mas vivo neste mundo,
ó sorte impia,
E dele só me mostra a estreita fresta
O quando é noite, ou dia.

Olhos baços, e sumidos,
Macilento, e descarnado,
Barba crescida, e hirsuta,
Cabelo desgrenhado;
Ah! que imagem tão digna de piedade!
Mas é, minha Marília, como vive
Um réu de Majestade.

Venha o processo, venha;
Na inocência me fundo:
Mas não morreram outros,
Que davam honra ao mundo!
O tormento, minha alma, não recuses:
A quem sábio cumpriu as leis sagradas
Servem de sólio as cruzes.

Tu, Marília, se ouvires,
Que ante o teu rosto aflito
O meu nome se ultraja
C’o suposto delito,
Dize severa assim em meu abono:
“Não toma as armas contra um Cetro justo
“Alma digna de um trono



                Essa lira é composta por seis estrofes com seis versos cada. Em cada estrofe, versos com medida nova (decassílabos), medida velha (versos hexassílabos) e rimas ABCBDED (com variantes sonoras).
                O eu lírico revela uma situação bastante constrangedora e deprimente e desabafa isso para sua amada. A tirania e a injustiça que abate o eu lírico é tanta que ele se considera um morto (1ª e 2ª estrofes), ainda na prisão (3ª estrofe). Ele se descreve (4ª estrofe) como alguém fisicamente derrubado e pede a Marilia (5 ª e 6ª estrofes) que, ao ouvir as acusações que pesam sobre ele, que não sejam levadas a sério.
                Sem querer entrar no mérito se o eu lírico tem ou não tem razão em suas queixas em relação ao que ele revela, quantas injustiças são praticadas atualmente? Por desmandos administrativos diversos, a população é quem paga a conta. Por arbitrariedade de um motorista que se acha no direito de beber, outra família é quem chora a perda de seu filho; por falha de uma competente apuração policial, um inocente pode ser condenado.
                O melhor remédio para essa e outras injustiças é cada um de nós sermos o mais ético, mais justo, o mais isento possível. Assumir os prejuízos quando for o causador destes; caso inocente, lutar pelos seus direitos.

Cartas Chilenas

"Aquele, Doroteu, que não é santo,
mas quer fingir-se santo aos outros homens,
pratica muito mais do que pratica
quem segue os sãos caminhos da verdade.
mal se põe nas igrejas, de joelhos,
abre os braços em cruz, a terra beija,
entorta seu pescoço, fecha os olhos,
faz que chora, suspira, fere o peito
e executa outras muitas macaquices,
estando em parte onde o mundo as veja."

                Sendo um poema organizado em treze cartas com versos decassílabos brancos (sem rima), conheçamos esse pequeno fragmento de uma dessas cartas.
                Certa feita, presenciei o que relato a seguir. Determinado candidato a um cargo público, quando em campanha, visitou um templo evangélico e se comportou como se evangélico fosse. Se ele tivesse visitado uma igreja católica, também teria agido como tal.
                O fragmento acima critica exatamente isso. Critilo, em suas palavras para Doroteu, critica a falsidade religiosa do Fanfarrão Minésio. Ao imitar os religiosos, Critilo associa a macaco a atitude desse religioso mascarado que apenas quer se fazer de santo ao imitar os fiéis daquela comunidade religiosa.
                O erro do Fanfarrão Minésio é, muitas vezes, o nosso erro. Quando falamos algo e não fazemos ou fazemos o que não falamos, agimos igual ao governante do fragmento.
                Ensinar que o fumo faz mal à saúde e ao mesmo ser fumante; e pregar que a prática física é essencial para o bem estar e ao mesmo tempo ser um sedentário são exemplos no que o Fanfarrão Minésio é criticado.

                Viver o que se prega é condição essencial para uma verdadeira ética social, seja em que área da vida for.

Fernando Fernandes

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