Na postagem anterior, conhecemos
um pouco da obra do árcade português Bocage e discutimos um pouco sobre as
características literárias do Arcadismo, além de conhecer três poemas da sua
autoria.
Hoje, falaremos um pouco sobre Tomás Antônio
Gonzaga.
Nascido
em Portugal e formado em Direito na cidade de Coimbra, no Brasil exerceu suas
atividades profissionais. Por conta da sua atividade artística e sua militância
política a favor da independência
brasileira (Inconfidência Mineira), foi preso e deportado para
Moçambique onde faleceu em 1810, aos 66 anos de idade.
Sua
atuação literária abrangeu duas grandes vertentes: a lírica e a satírica.
A
primeira vertente, a lírica, está representada pela obra Marilia de Dirceu. Nessa lírica, as principais temáticas árcades
são representadas na primeira parte desse trabalho; na segunda parte, o eu
lírico adota um tom mais trágico em função da sua atual situação, preso e
incerto quanto ao seu futuro.
A
segunda vertente está representada pela obra Cartas Chilenas. Nesse trabalho, o autor se vale do fingimento poético:
Critilo (o remetente) dirige suas
palavras a Doroteu (destinatário) que
vivia supostamente na Espanha para expor suas críticas ao governo do Fanfarrão Minésio (o assunto das cartas).
Na verdade, essas cartas circularam anônimas e são denúncias feitas por Tomás
A. Gonzaga em relação ao governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses.
Feitas
as considerações teóricas, vamos à prática.
Marília de Dirceu –
fase árcade tradicional – LIRA XVIII
Não vês aquele velho
respeitável,
Que, à muleta
encostado,
Apenas mal se move e
mal se arrasta?
Oh! Quanto estrago
não lhe fez o tempo,
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze
gasta!
Enrugaram-se as faces
e perderam
Seus olhos a viveza:
Voltou-se o seu
cabelo em branca neve
Já lhe treme a
cabeça, a mão, o queixo,
Não tem uma beleza
Das belezas que teve.
Assim também serei,
minha Marília,
Daqui a poucos anos,
Que o ímpio tempo
para todos corre.
Os dentes cairão e os
meus cabelos.
Ah! Sentirei os
danos,
Que evita só quem
morre.
Mas sempre passarei
uma velhice
Muito menos penosa.
Não trarei a muleta
carregada,
Descansarei o já
vergado corpo
Na tua mão piedosa,
Na tua mão nevada.
As frias tardes, em
que negra nuvem
Os chuveiros não
lance,
Irei contigo ao prado
florescente:
Aqui me buscarás um
sítio ameno,
Onde os membros
descanse,
E ao branco Sol me
aquente.
Apenas me sentar,
então, movendo
Os olhos por aquela
Vistosa parte, que
ficar fronteira,
Apontando direi: Ali
falamos,
Ali, ó minha bela,
Te vi vez primeira.
Verterão os meus
olhos duas fontes,
Nascidas de alegria;
Farão meus olhos
ternos outro tanto;
Então darei, Marília,
frios beijos
Na mão formosa e pia,
Que me limpar o
pranto.
Assim irá, Marília,
docemente
Meu corpo suportando
Do tempo desumano a
dura guerra.
Contente morrerei,
por ser Marília
Quem, sentida,
chorando
Meus baços olhos
cerra.
Vocabulário:
Arrebatado:
Levado pelos ares
Baços:
Embaçados, turvos
Cerrar:
Fechar
Ímpio: Sem
compaixão, cruel
Pia: Piedosa
Prado:
Campina
Sítio: Um
local qualquer, quando não se quer identificar
Vergado:
Curvado
Verterão:
Derramarão
Vistosa:
Garbosa, o que se destaca
Essa
lira é composta por oito estrofes com seis versos cada. Em cada estrofe, versos
com medida nova (decassílabos), medida velha (versos hexassílabos) e rimas ABCDBC.
Tendo
como ponto de partida que a vida é breve (sentido físico e psicológico) e que um dia, caso não morramos enquanto somos
jovens viveremos a terceira idade, o eu lírico inicia sua reflexão na
observação de um idoso e a constatação de que também será assim, com todas as
desvantagens de um corpo já cansado.
Entretanto,
os prejuízos causados pela velhice serão diminuídos pelo fato do eu lírico projetar
nesse futuro a companhia de Marilia para viver determinados momentos tais como descansar
seu vergado corpo nas mão dela (4ª estrofe); irem novamente ao campo onde, pela
primeira vez eles se encontraram e se beijaram (5ª, 6ª e 7ª estrofes) e a certeza de que ele
morrerá ao lado dela a ponto de ser ela quem fechará os olhos dele (8ª
estrofe).
Em
uma sociedade em que o sentido de fluidez e o descarte se fazem tão presentes
na mídia e nos nossos relacionamentos (namoro, noivado, casamento, etc) a
impressão que se tem que podemos trocar de pessoa assim como trocamos de
objetos. Se um celular mais moderno é lançado, rapidamente descartamos o atual
a fim de acompanharmos a nova tecnologia; se meu (minha) parceiro(a) não me
agrada mais, imediatamente buscamos uma outra pessoa.
O
fragmento lido mostra o contrário. Revela um casal que se ama desde a juventude
e que pretende permanecer juntos até que a morte o separe, lá na velhice.
A
reflexão que deixo é a seguinte. Como eu e você encaramos nossos
relacionamentos? Somos capazes de ceder para que a convivência perdure ou nossa
razão é tão forte a ponto de não ser possível mais esse convívio?
Marília de Dirceu –
fase sentimental – LIRA XXXIII
Morri, ó minha Bela:
Não foi a Parca
impia,
Que na tremenda roca,
Sem Ter descanso,
fia;
Não foi, digo, não
foi a Morte feia
Quem o ferro moveu, e
abriu no peito
A palpitante veia.
Eu, Marília, respiro;
Mas o mal, que
suporto,
É tão tirano, e
forte,
Que já me dou por
morto:
A insolente calúnia
depravada
Ergueu-se contra mim,
vibrou da língua
A venenosa espada.
Inda, ó Bela, não vejo
Cadafalso enlutado,
Braço de ferro
armado;
Mas vivo neste mundo,
ó sorte impia,
E dele só me mostra a
estreita fresta
O quando é noite, ou
dia.
Olhos baços, e
sumidos,
Macilento, e
descarnado,
Barba crescida, e
hirsuta,
Cabelo desgrenhado;
Ah! que imagem tão
digna de piedade!
Mas é, minha Marília,
como vive
Um réu de Majestade.
Venha o processo,
venha;
Na inocência me
fundo:
Mas não morreram
outros,
Que davam honra ao
mundo!
O tormento, minha
alma, não recuses:
A quem sábio cumpriu
as leis sagradas
Servem de sólio as
cruzes.
Tu, Marília, se
ouvires,
Que ante o teu rosto
aflito
O meu nome se ultraja
C’o suposto delito,
Dize severa assim em
meu abono:
“Não toma as armas
contra um Cetro justo
“Alma digna de um
trono
Essa
lira é composta por seis estrofes com seis versos cada. Em cada estrofe, versos
com medida nova (decassílabos), medida velha (versos hexassílabos) e rimas ABCBDED
(com variantes sonoras).
O
eu lírico revela uma situação bastante constrangedora e deprimente e desabafa
isso para sua amada. A tirania e a injustiça que abate o eu lírico é tanta que
ele se considera um morto (1ª e 2ª estrofes), ainda na prisão (3ª estrofe). Ele
se descreve (4ª estrofe) como alguém fisicamente derrubado e pede a Marilia (5
ª e 6ª estrofes) que, ao ouvir as acusações que pesam sobre ele, que não sejam levadas a sério.
Sem
querer entrar no mérito se o eu lírico tem ou não tem razão em suas queixas em
relação ao que ele revela, quantas injustiças são praticadas atualmente? Por
desmandos administrativos diversos, a população é quem paga a conta. Por arbitrariedade
de um motorista que se acha no direito de beber, outra família é quem chora a
perda de seu filho; por falha de uma competente apuração policial, um inocente
pode ser condenado.
O
melhor remédio para essa e outras injustiças é cada um de nós sermos o mais
ético, mais justo, o mais isento possível. Assumir os prejuízos quando for o
causador destes; caso inocente, lutar pelos seus direitos.
Cartas Chilenas
"Aquele,
Doroteu, que não é santo,
mas quer fingir-se
santo aos outros homens,
pratica muito mais do
que pratica
quem segue os sãos
caminhos da verdade.
mal se põe nas
igrejas, de joelhos,
abre os braços em
cruz, a terra beija,
entorta seu pescoço,
fecha os olhos,
faz que chora,
suspira, fere o peito
e executa outras
muitas macaquices,
estando em parte onde
o mundo as veja."
Sendo
um poema organizado em treze cartas com versos decassílabos brancos (sem rima),
conheçamos esse pequeno fragmento de uma dessas cartas.
Certa
feita, presenciei o que relato a seguir. Determinado candidato a um cargo
público, quando em campanha, visitou um templo evangélico e se comportou como
se evangélico fosse. Se ele tivesse visitado uma igreja católica, também teria
agido como tal.
O
fragmento acima critica exatamente isso. Critilo, em suas palavras para
Doroteu, critica a falsidade religiosa do Fanfarrão Minésio. Ao imitar os
religiosos, Critilo associa a macaco a atitude desse religioso mascarado que
apenas quer se fazer de santo ao imitar os fiéis daquela comunidade religiosa.
O
erro do Fanfarrão Minésio é, muitas vezes, o nosso erro. Quando falamos algo e
não fazemos ou fazemos o que não falamos, agimos igual ao governante do
fragmento.
Ensinar
que o fumo faz mal à saúde e ao mesmo ser fumante; e pregar que a prática
física é essencial para o bem estar e ao mesmo tempo ser um sedentário são
exemplos no que o Fanfarrão Minésio é criticado.
Viver
o que se prega é condição essencial para uma verdadeira ética social, seja em
que área da vida for.
Fernando Fernandes
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