Quero propor uma nova intertextualidade entre dois poemas de Carlos Drummond de Andrade, escritor pertencente ao segundo momento do Modernismo brasileiro (segunda geração modernista ou geração de 30).
O primeiro poema, intitulado 'A noite dissolve os homens' foi publicado na obra 'Sentimento do Mundo' (1940), Já o segundo poema, 'A flor e a náusea', publicado na obra 'A rosa do povo' (1945)
A noite dissolve os homens
(Carlos Drummond de Andrade)
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite o medo
e total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança… Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo…
O mundo não tem remédio…
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
A flor e a náusea
(Carlos Drummond de Andrade)
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Breve análise
O primeiro poema, estruturado em dois blocos antitéticos, descreve diferentes lados da experiência humana..
Que noite! Total incompreensão, incapacidade de perceber a presença do próximo, medo sem medida. É mortal, completa, cabal, tão resoluta que repele a presença do amor a ponto de ser inútil o ato de sofrer. É noite que anoitece qualquer possibilidade de harmonia, paz, sorriso ameno, olhar brilhante, troca de afetos. É tanta falta de empatia, companheirismo, respeito ao outro; tanto egoísmo, desejo de usurpar o que não lhe pertence, pisar nos sonhos que não fomos capazes de sonhar. Enfim, é o ser humano em total condição de perdição.
Aurora! A desordem total da raça humana reveste-se de esperança. Ao suceder ao período noturno, fazer-se presente é questão de tempo. Sim, o dissipar de toda a desesperança e o surgir de tempos de refrigério, colo, carinho, proteção são suas ações.
Se por um lado, a noite anoiteceu tudo, por outro lado, havemos de amanhecer.
O segundo poema apresenta uma situação um tanto diferente. Dessa vez, há um eu lírico preso a circunstâncias tão sacrificantes e crucificantes a ponto de nomeá-las de ‘fezes’ e desejar libertar-se desse caos. Porém, é total a impossibilidade dessa libertação, simplesmente por não haver ferramentas para tal ato. Como libertar-se sem quem o ouça? Sem quem o ajude? Sem quem o console? Sem quem o compreenda?
Do nada, realmente do nada, um raio de esperança se faz presente por meio da metáfora da flor que aparece na rua. A surpresa é tanta, a fé passa a ser tanta, a certeza de novos tempos passa a ser tanta que esse raio de esperança, surgido do nada, será capaz de furar o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio.
Nossas vidas são assim. Mesmo dentro de uma situação em que tudo se mostra claramente definido como uma perda, uma certeza do amanhecer se faz presente. Por outro lado, podem ocorrer também dilemas que, certamente, não podem determinar que algo está acontecendo, mas também determinados que possam mudar. Mesmo sem qualquer possibilidade de esperança, do nada, realmente do nada, surge algo ou alguém que devolva o sorriso a cada um de nós.
Será eu essa flor que surge na rua a, o alento, a alegria para meu próximo?
Fernando Fernandes