quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Mais sobre Drummond

             Quero propor uma nova intertextualidade entre dois poemas de Carlos Drummond de Andrade, escritor pertencente ao segundo momento do Modernismo brasileiro (segunda geração modernista ou geração de 30).

O primeiro poema, intitulado 'A noite dissolve os homens' foi publicado na obra 'Sentimento do Mundo' (1940), Já o segundo poema, 'A flor e a náusea', publicado na obra 'A rosa do povo' (1945)




A noite dissolve os homens

(Carlos Drummond de Andrade)


A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos.

E nem tão pouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite o medo

e total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperança… Os suspiros

acusam a presença negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho

na noite. A noite é mortal,

completa, sem reticências,

a noite dissolve os homens,

diz que é inútil sofrer,

a noite dissolve as pátrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo…

O mundo não tem remédio…

Os suicidas tinham razão.


Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se não modelaram

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,

os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocência, um perdão simples e macio…

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.


A flor e a náusea

(Carlos Drummond de Andrade)



Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?


Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.


Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.


Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.


Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.


Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.


Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.


Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.


Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.








Breve análise


O primeiro poema, estruturado em dois blocos antitéticos, descreve diferentes lados da experiência humana.. 

Que noite! Total incompreensão, incapacidade de perceber a presença do próximo, medo sem medida. É mortal, completa, cabal, tão resoluta que repele a presença do amor a ponto de ser inútil o ato de sofrer. É noite que anoitece qualquer possibilidade de harmonia, paz, sorriso ameno, olhar brilhante, troca de afetos. É tanta falta de empatia, companheirismo, respeito ao outro; tanto egoísmo, desejo de usurpar o que não lhe pertence, pisar nos sonhos que não fomos capazes de sonhar. Enfim, é o ser humano em total condição de perdição.

Aurora! A desordem total da raça humana reveste-se de esperança. Ao  suceder ao período noturno, fazer-se presente é questão de tempo. Sim, o dissipar de toda a desesperança e o surgir de tempos de refrigério, colo, carinho, proteção são suas ações. 

Se por um lado, a noite anoiteceu tudo, por outro lado, havemos de amanhecer.

O segundo poema apresenta uma situação um tanto diferente. Dessa vez, há um eu lírico preso a circunstâncias tão sacrificantes e crucificantes a ponto de nomeá-las de ‘fezes’ e desejar libertar-se desse caos. Porém, é total a impossibilidade dessa libertação, simplesmente por não haver ferramentas para tal ato. Como libertar-se sem quem o ouça? Sem quem o ajude? Sem quem o console? Sem quem o compreenda?

Do nada, realmente do nada, um raio de esperança se faz presente por meio da  metáfora da flor que aparece na rua. A surpresa é tanta, a fé passa a ser tanta, a certeza de novos tempos passa a ser  tanta que esse raio de esperança, surgido do nada, será capaz de furar o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio.

Nossas vidas são assim. Mesmo dentro de uma situação em que tudo se mostra claramente definido como uma perda, uma certeza do amanhecer se faz presente. Por outro lado, podem ocorrer também dilemas que, certamente, não podem determinar que algo está acontecendo, mas também determinados que possam mudar. Mesmo sem qualquer possibilidade de esperança, do nada, realmente do nada, surge algo ou alguém que devolva o sorriso a cada um de nós.

Será eu essa flor que surge na rua a, o alento, a alegria para meu próximo?


Fernando Fernandes


quarta-feira, 30 de junho de 2021

          


         Compartilho com vocês dois poemas da autoria de Carlos Drummond de Andrade e uma sugestão de diálogo entre eles. 

O primeiro poema, bastante conhecido, pertence à obra ‘Alguma Poesia’ (1930). Já o segundo poema, ele pertence à obra ‘Sentimento do Mundo’ (1940), 




No meio do caminho

(Carlos Drummond de Andrade)


No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.



A noite dissolve os homens

(Carlos Drummond de Andrade)


A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos.

E nem tão pouco os rumores

que outrora me perturbavam.

A noite desceu. Nas casas,

nas ruas onde se combate,

nos campos desfalecidos,

a noite espalhou o medo

e a total incompreensão.

A noite caiu. Tremenda,

sem esperança… Os suspiros

acusam a presença negra

que paralisa os guerreiros.

E o amor não abre caminho

na noite. A noite é mortal,

completa, sem reticências,

a noite dissolve os homens,

diz que é inútil sofrer,

a noite dissolve as pátrias,

apagou os almirantes

cintilantes! nas suas fardas.

A noite anoiteceu tudo…

O mundo não tem remédio…

Os suicidas tinham razão.


Aurora,

entretanto eu te diviso, ainda tímida,

inexperiente das luzes que vais acender

e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,

adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.

O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,

teus dedos frios, que ainda se não modelaram

mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.

Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,

minha carne estremece na certeza de tua vinda.

O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,

os corpos hirtos adquirem uma fluidez,

uma inocência, um perdão simples e macio…

Havemos de amanhecer. O mundo

se tinge com as tintas da antemanhã

e o sangue que escorre é doce, de tão necessário

para colorir tuas pálidas faces, aurora.



Apesar de dez anos de diferença entre a publicação dos poemas que você acabou de ler, o segundo poema exemplifica o que o primeiro poema apenas denominou de pedra.

No primeiro poema, não há pistas seguras para caracterizar o objeto ou mesmo que tipo de marcas psicológicas permaneceram no eu lírico. Só sabemos que havia uma pedra no caminho e que este instante nunca mais foi deletado da sua mente. A pedra era real ou metafórica? As marcas deixadas no eu lírico foram lembranças positivas ou negativas? As lembranças representaram  dificuldade superada ou  perda irreparável? As recordações deixaram também traumas ou ficaram apenas na lembranças? 

O segundo poema exemplifica o foi apresentado de forma genérica no primeiro poema. Na primeira parte, a desesperança metaforizada pela noite que cai, a ponto de o eu lírico afirmar que ‘a noite anoiteceu tudo… / O mundo não tem remédio… / Os suicidas tinham razão. 

A existência de uma grande pedra que praticamente derrubou o eu lírico de forma cabal transformou-se em momento de superação. A voz poética não ficou prostrada. Pelo contrário. Assim como todo o amanhecer se segue ao período noturno, a aurora se seguiu a aquela noite.

Sim! O eu lírico não se entregou. Por mais que a noite estivesse escura, ele conseguiu divisar a aurora, ainda que tímida. E que a luz desse novo dia seria capaz de expulsar a treva noturna, a desesperança, o egoísmo, a ausência de carinho, e a dissolvição dos homens.

Nossas vidas são assim. Vivemos a alternância entre noite e dia,  desesperança e otimismo, derrotas e vitórias. descrença e fé, perdas e ganhos.

Que as pedras que surjam na nossa caminhada não sejam capazes de derrotar a cada um de nós.

Fernando Fernandes


terça-feira, 22 de junho de 2021

Impressões

 

IMPRESSÕES

 

 


Ainda pelas minhas andanças pela Asa Sul, em um dos momentos da fuga de casa em meio à pandemia que assola a cada um de nós, deparei-me com o cenário acima. Um órgão público do GDF, entre a edificação e o estacionamento.

Que vontade eu tinha de estar ali. Antes, porém, registrei a cena digitalmente. “Que mico!”, Pensei. Hesitei. Por fim, desfrutei meu carpe diem em um daqueles assentos.

'Carpe Diem' e 'Locus Amoenos' - você deve se lembrar - são expressões latinas utilizadas na literatura para traduzir a experiência de viver seu sonho em um local aprazível. Exatamente o que a mídia propaga ao divulgar suas viagens paradisíacas e, por extensão de significado, no desejo de posse de determinado bem (automóvel, celular, etc).

Por outro lado, lembrei-me dos versos de Vinícius de Morais: Como a criança que vagueia o canto / Ante o mistério da amplidão suspensa / Meu coração é um vago de acalanto / Berçando versos de saudade imensa. Sim. É o vazio de algo necessário na alma do eu lírico ou algo que precisa preencher esse 'vago de acalanto'.

Por fim, sem nada combinado de véspera, enviei a imagem acima para o WhatsApp da minha esposa e pedi-lhe que respondesse à seguinte pergunta: O que vem ao seu coração a partir da imagem?

E a sua impressão sobre os dois bancos em ângulo de 90 graus chegou até mim, palavras transcrevo:

“O silêncio ambiental mostra como dói não ver e ouvir a voz de outra pessoa. Muitas vezes, ficamos presos a padrões que a sociedade nos impõe e nos esquecemos do mais importante que é o relacionamento saudável entre nós, seres humanos. 

Com a pandemia, estamos nos sentindo assim, como a imagem dos bancos seriados por uma grama ou uns passarinhos que aparecem para alegrar o ambiente que, um dia era cheio de calor humano. E hoje, resta só o vazio”.

O que vem ao seu coração a partir da imagem?

 

Fernando fernandes

 

 

terça-feira, 8 de junho de 2021

Aparências

 

APARÊNCIAS

 

 



 

            Nas minhas andanças pela Asa Sul, deparei-me com uma árvore um tanto diferente. Caule grosso, alta, grande copa. Pela imagem, dá até vontade de usufruir do seu frescor, relaxar à sombra.

            O que há de diferente mesmo nela é o que eu, no meu senso comum, chamei de minicaule. São muitos. Sinceramente, não fui atrás de qualquer suporte na área da Botânica para que a poesia presente nesse encontro não se perdesse. Como o primeiro beijo, a primeira saída de casa sem a companhia de algum familiar ou o primeiro dia de trabalho, precisava maturar esse encontro.

            De pronto, imaginei essa árvore ser provida de grande força, a ponto de suportar vendavais, tempestades. E ela continua onde está. Mais tarde, voltando à cena inicial por meio do pensamento, considerei a possibilidade de que sua aparência de solidez pudesse mascarar alguma fraqueza interior. Novas imagens vieram a mim, dessa vez de outras árvores que aparentam simplicidade. Contudo, são de uma resiliência enorme.

            Por fim, o óbvio por trás da cena. Agora, em relação a nós, humanos.

            A avaliação feita ao próximo em função da aparência é passível de enganos. Não importa o critério utilizado. Cada um de nós possuímos pontos fortes e pontos fracos, virtudes e defeitos. Daí a importância de considerar nosso semelhante tão bom, tão especial quanto nós mesmos.

            De onde menos esperamos, nosso pedido de socorro é atendido.

 

                                    Fernando Fernandes

 

sábado, 29 de maio de 2021

Monteiro Lobato versus Anita Malfatti

 Paranoia ou Mistificação? 

Monteiro Lobato


Este artigo foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 1917, com o título "A Propósito da Exposição Malfatti", provocando a polêmica que afastaria os modernistas de Monteiro Lobato.



Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.

Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a "interpretação" que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.

Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um semi-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.

Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. [...]

Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.


Artigo na íntegra, no link abaixo.

http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html




COMENTANDO ‘PARANOIA OU MISTIFICAÇÃO?’


Paranoia ou Mistificação? é a crítica de Monteiro Lobato à exposição expressionista de Anita Malfatti, em 1917. 

O primeiro parágrafo apresenta dois conceitos de artistas. Um deles são os promotores da arte pura e inclusive, cita alguns. O segundo grupo, são aqueles incapazes de apresentar, aos olhos do articulista, o que considera verdadeira arte. 

O artigo se concentra no segundo grupo de artistas, associando  homens,  mulheres e seu trabalho a produção típica de manicômios, com um agravante. A arte produzida em manicômios é sincera ao passo que a arte produzida por esse grupo é carente de sinceridade, daí fruto de uma paranoia ou mistificação pura por pura falta de lógica nos traços.

O terceiro e quarto parágrafos apresentam, de forma clara, o alvo da sua crítica: o trabalho de Anita Malfatti e os pressupostos defendidos pelo Cubismo, Futurismo, Impressionismo e outras tantas teorias, aqui denominadas de ‘tutti quanti’.

O parágrafo final arremata a crítica, dessa vez  a aqueles que admiram o trabalho de Malfatti, no sentido de que os elogios não teriam sido sinceros e que essa falta de transparência teria incentivado a artista apresentar o que apresentou. Monteiro se apresenta como alguém sincero, pois critica o trabalho dela.


Temos:


1- Para Monteiro Lobato, o trabalho realizado por Anita Malfatti relacionada a sua arte e o diálogo com as Vanguardas é como arte deformada.


2- A argumentação de Lobato para criticar Anita Malfatti é a forma distorcida de como esses artistas enxergam as coisas, relacionando-os à visão de pessoas que vivem em manicômios.


3- A citação de Lobato a artistas e respectivos países no início da crítica reflete sua posição sobre o que é o belo na arte, apontando para o sentido tradicional.


4- O artigo exemplifica o choque entre os defensores da arte tradicional e aqueles que buscam a inovação. Na verdade, cada um de nós vive esse embate. Algumas vezes, estamos a favor da tradição, em outras vezes, estamos a favor do novo.




Fernando Fernandes