sábado, 29 de maio de 2021

Monteiro Lobato versus Anita Malfatti

 Paranoia ou Mistificação? 

Monteiro Lobato


Este artigo foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 1917, com o título "A Propósito da Exposição Malfatti", provocando a polêmica que afastaria os modernistas de Monteiro Lobato.



Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.

Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a "interpretação" que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.

Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um semi-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.

Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. [...]

Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.


Artigo na íntegra, no link abaixo.

http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/paranoia.html




COMENTANDO ‘PARANOIA OU MISTIFICAÇÃO?’


Paranoia ou Mistificação? é a crítica de Monteiro Lobato à exposição expressionista de Anita Malfatti, em 1917. 

O primeiro parágrafo apresenta dois conceitos de artistas. Um deles são os promotores da arte pura e inclusive, cita alguns. O segundo grupo, são aqueles incapazes de apresentar, aos olhos do articulista, o que considera verdadeira arte. 

O artigo se concentra no segundo grupo de artistas, associando  homens,  mulheres e seu trabalho a produção típica de manicômios, com um agravante. A arte produzida em manicômios é sincera ao passo que a arte produzida por esse grupo é carente de sinceridade, daí fruto de uma paranoia ou mistificação pura por pura falta de lógica nos traços.

O terceiro e quarto parágrafos apresentam, de forma clara, o alvo da sua crítica: o trabalho de Anita Malfatti e os pressupostos defendidos pelo Cubismo, Futurismo, Impressionismo e outras tantas teorias, aqui denominadas de ‘tutti quanti’.

O parágrafo final arremata a crítica, dessa vez  a aqueles que admiram o trabalho de Malfatti, no sentido de que os elogios não teriam sido sinceros e que essa falta de transparência teria incentivado a artista apresentar o que apresentou. Monteiro se apresenta como alguém sincero, pois critica o trabalho dela.


Temos:


1- Para Monteiro Lobato, o trabalho realizado por Anita Malfatti relacionada a sua arte e o diálogo com as Vanguardas é como arte deformada.


2- A argumentação de Lobato para criticar Anita Malfatti é a forma distorcida de como esses artistas enxergam as coisas, relacionando-os à visão de pessoas que vivem em manicômios.


3- A citação de Lobato a artistas e respectivos países no início da crítica reflete sua posição sobre o que é o belo na arte, apontando para o sentido tradicional.


4- O artigo exemplifica o choque entre os defensores da arte tradicional e aqueles que buscam a inovação. Na verdade, cada um de nós vive esse embate. Algumas vezes, estamos a favor da tradição, em outras vezes, estamos a favor do novo.




Fernando Fernandes


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