A partir da leitura da obra Dom Quixote que eu fiz há algum tempo atrás, gostaria de pinçar alguns trechos para discutir algumas regras da cavalaria andante, aquelas praticadas pelos cavaleiros medievais presentes nas novelas de cavalaria do período medieval.
O livro, publicado em 1605, parodiou os romances de cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período medieval e que, no momento da publicação de Dom Quixote, já estavam fora de moda.
Nesta obra, a paródia apresenta uma forma invulgar. O protagonista, já de certa idade, entrega-se à leitura das novelas de cavalaria. Com o passar do tempo, ele perde o juízo, acredita que tenham sido historicamente verdadeiros e decide tornar-se um cavaleiro andante. Para tanto, ele vai adotar todas as práticas, rituais e valores praticados pela cavalaria andante. Por fim, parte pelo mundo e vive o seu próprio romance de cavalaria. Enquanto narra os feitos do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes satiriza os preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis.
A intenção do autor, ao escrever Dom Quixote, era satirizar a novela de cavalaria, que tinha sido muito popular na Europa há uns 300 anos atrás e que no momento estava em decadência por não se enquadrar mais nos padrões sociais vigentes. E acabou retratando o perfil de um homem simples que se divide entre a fantasia e a realidade a partir da leitura de inúmeros romances da cavalaria. Dom Quesada, de tanto ler novelas de cavalaria, passa a se comportar como um deles. É quando surge Dom Quixote.
Os comentários que farei serão pautados na versão preparada pela editora Scipione, série Reencontro, edição de 1999, cuja adaptação feita por José Angeli permite ao adolescente a percepção da beleza desta e obra literária em uma linguagem mais leve, própria para a idade. E recomendo firmemente a leitura dessa versão, disponível nas livrarias e bibliotecas. Mais tarde, você poderá ler a versão integral de Dom Quixote.
Retomando ao início, como perceber em Dom Quixote as regras da cavalaria andante que ele vai obedecer fielmente. Vejamos alguns exemplos ao longo da obra.
a) Todo o cavaleiro andante precisa de um cavalo e de uma armadura: “Rebuscando o sótão de sua casa, encontrou uma velha e enferrujada armadura que havia pertencido a um bisavô... Depois de paciente trabalho, raspando a ferrugem... conseguiu uma armadura completa, ainda que de precária eficiência. [...} Vencida esta etapa, foi em busca do seu cavalo, pois, mesmo para um espírito perturbado, era impossível existir um nobre cavaleiro sem montaria. Ele possuía um pangaré que era usado nos serviços do sítio. Apesar de magro e feio, pareceu um belo garanhão aos olhos do fidalgo. Depois de muito pensar, deu-lhe o nome de Rocinante. Esse nome pareceu-lhe sonoro e adequado.” – páginas 7 e 8 –
b) Todo o cavaleiro andante precisa de uma paixão: “Tudo preparado para a partida, percebeu que lhe faltava apenas encontrar uma nobre dama para apaixonar-se. Um cavaleiro andante sem amores era uma arvore sem frutos, um corpo sem alma. Se, por azar ou sorte, derrotasse um gigante, teria que enviá-lo à sua amada para que servisse como escravo. Esse era o procedimento da nobre cavalaria andante e Dom Quixote queria seguir, fielmente, seus costumes. (...) Num passado distante havia amado, em discreto silêncio, uma robusta camponesa que, por morar num povoado vizinho e ter outros interesses, jamais se dera conta daquela secreta paixão. Chamava-se Aldonça Lourenço, mas ao fidalgo pareceu melhor dar-lhe outro nome. Era uma princesa e deveria chamar-se Dulcinéia.” – página 8 –
c) Todo o cavaleiro andante não se prende a bens materiais: Dom Quixote, ao se aproximar de uma estalagem, sendo que na cabeça do cavaleiro ele imaginava ser um castelo. O estalajadeiro, percebendo a loucura, entra no jogo. Contudo, se preocupa em relação a um possível calote na hora de Dom Quixote pagar sua hospedagem. É quando Dom Quixote respondeu-lhe “ que não, e que nunca havia lido em livro algum, que os cavaleiros andantes carregassem as mundanas e desprezíveis moedas.” – página 12 –
Um outro episódio referente a esta regra da cavalaria ocorre após um episódio em que Dom Quixote e Sancho Pança estão com poucos alimentos na bolsa. No caso, possuem apenas “uma cebola, um pouco de queixo e alguns nacos de pão.”. O escudeiro reclama. Porém, Dom Quixote afirma que “os cavaleiros andantes não ligam para as coisas materiais... A comida mais frugal pode se transformar num manjar digno dos deuses” – página 34 –
d) O verdadeiro palácio de um cavaleiro é o verde da natureza: Numa das andanças de Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança após se afasteram de um castelo, afirma: “Este é, meu caro Sancho, o verdadeiro palácio de um cavaleiro andante.” – página 120 –
Para encerrar, gostaria de reproduzir trechos de “A incrível batalha contra os moinhos de vento” – páginas 25 a 28, também da citada versão para adolescentes para que possamos por em prática a teoria acima desenvolvida.
Depois de cavalgarem algumas horas, chegaram a um grande campo onde se viam entre trinta e quarenta moinhos de vento.
A sorte vem-nos guiando melhor do que poderíamos desejar – disse Dom Quixote, segurando seu cavalo. – Vê, meu fiel Sancho: diante de nós estão mais de trinta insolentes gigantes a quem penso dar combate e matar um por um. Com seus despojos iniciaremos nossa riqueza, além de arrancar essas sementes ruins da face da terra. Essa é a ordem de Deus que devemos cumprir.
- Que gigantes? – perguntou Sancho Pança, que por mais que examinasse o terreno só via os inocentes moinhos de vento agitanto suas pás vagarosamente.
- Aqueles que ali vês – respondeu o amo. – Tem os braços tão longos que alguns devem medir mais de duas léguas...
- Olhe bem Vossa Mercê – contestou Sancho. – Aquilo não são gigantes e sim moinhos de ventos, e o que parecem braços são as pás que, movidas pelo vento, fazem girar a pedra que mói os grãos.
- Bem se vê que não tens prática nessas aventuras. São gigantes e, se tens medo, afasta-te daqui. O melhor é que fiques rezando enquanto me atiro a essa feroz e desigual batalha.
E, dizendo isso, esporeou o pangaré sem atender aos apelos do escudeiro, certo de que combatia ferozes gigantes.
- Não fujais, covardes e abjetas criaturas! Sois atacadas por somente um cavaleiro!.
Enquanto galopava contra o primeiro moinho, o vento aumentou de intensidade fazendo girar as pás com maior velocidade.
- Não adianta agitar os braços. Havereis de me pagar! – gritou, atirando-se contra o “inimigo” mais próximo, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia.
Foi a conta. Ao cravar a lança numa das pás do moinho, a força do impacto reduziu-a a pedaços, atirando o cavaleiro e cavalo a distância. Sancho Pança acorreu em socorro, seu alquebrado jumento trotejando grotescamente.
- Valha-me Deus! – disse Sancho - Não vos avisei que olhásseis bem para o que íeis fazer? Que eram moinhos e não gigantes? Como é que alguém pode-se enganar assim.
Enquanto ia falando, o gordo escudeiro tentava levantar tanto o cavaleiro quanto o cavalo, pois o velho Rocinante continuava atordoado pela violência da pancada.
- Cala-te, amigo – respondeu Dom Quixote. – Esses são os azares da guerra. Eram gigantes, agora são moinhos. Essa foi mais uma sábia picardia do sábio Frestão – aquele que roubou meus livros! – Só assim poderia roubar-me a glória de tão magnífica vitória. Mais ainda tirarei vingança de suas artes diabólicas com a justeza da minha espada!
[...]
Apesar dos arranhões e escoriações sofridas, o que mais entristecia Dom Quixote era a perda de sua lança. Como poderia um verdadeiro cavaleiro andante andar sem sua nobre arma? Enquanto cavalgava, seuido pelo seu fiel escudeiro, o fidalgo lembrou-se de que, outrora, o cavaleiro espanhol Diogo Peres de Vargas havia quebrado sua espada numa batalha e a substituira por um grosso galho de carvalho. Assim armado, combatera e vencera muitos mouros, o que lhe valera a glória e o respeito de todos os seus descendentes.
- Farei o mesmo – disse ao criado – E podes ter certeza de que me sairei tão bem quando Dom Vargas.
[...]
- Realmente, estou um tanto dolorido. Só não me queixo por que isso não fica bem para um cavaleiro andante. Mesmo que minhas tripas estivessem saindo pelos ferimentos, jamais soltaria um ai sequer.
[...]
Seguiram sua rota. Sancho Pança, escarrapachado sobre o lombo do jumento, mastigava algumas provisões que trazia nos alfojes, entremeadas por longos goles de vinho que chupava de uma botija. Dom Quixote, para não se rebaixar às simples necessidades humanas, pouco condizentes com os cavaleiros de sua casta, nada comeu. Disse não ter fome.
Agora é o momento de você colocar em prática o que entendeu. A partir da aventura vivida pelo nosso amado D. Quixote no episódio dos moinhos de vento, responda as questões abaixo, sempre ilustrando o aspecto teórico ao episódio citado.
1) É possível perceber nessa aventura - D. Quixote e os moinhos de vento - a presença de algumas regras da cavalaria andante. Cite pelo menos duas leis e exemplifique.
2) Explique com suas palavras como se dá a mescla entre realidade e fantasia por parte do nosso herói no episódio em estudo.
3) Explique como a religiosidade se apresenta na condução das personagens no episódio em estudo.
4) Em que momentos da narrativa a ficção se faz presente?
5) Como a idealização amorosa se faz presente na narrativa em análise?
6) Como a construção de um perfil heroico se apresenta na narrativa que acabamos de analisar?
Se você respondeu e justificou suas respostas às questões acima, você terá entendido como as personagens das novelas de cavalaria medieval eram retratados, ainda que tenhamos analisado essas características literárias em uma obra produzida para satirizar as novelas de cavalaria ao criar um herói bem diferente do herói existente nas novelas. Mesmo atrapalhado, a visão idealista e ética de Dom Quixote foi mantida.
Fica a lição para nós. Ainda que todos pensem que nós sejamos quixotecos, lutemos por aquilo que acreditamos. Assim como Dom Quixote creu em um modelo de sociedade não mais compatível com a época em que viveu e lutou pelo que acreditava, lute você também pelos seus ideais.
Afinal, nossos sonhos nos fazem viver.
Fernando Fernandes