sexta-feira, 19 de agosto de 2011

1º ANO/2º ANO - DOM QUIXOTE E A CAVALARIA MEDIEVAL

   A partir da leitura da obra Dom Quixote que eu fiz há algum tempo atrás, gostaria de pinçar alguns trechos para discutir algumas regras da cavalaria andante, aquelas praticadas pelos cavaleiros medievais presentes nas novelas de cavalaria do período medieval.
   O livro, publicado em 1605, parodiou os romances de cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período medieval e que, no momento da publicação de Dom Quixote, já estavam fora de moda.
   Nesta obra, a paródia apresenta uma forma invulgar. O protagonista, já de certa idade, entrega-se à leitura das novelas de cavalaria. Com o passar do tempo, ele perde o juízo, acredita que tenham sido historicamente verdadeiros e decide tornar-se um cavaleiro andante. Para tanto, ele vai adotar todas as práticas, rituais e valores praticados pela cavalaria andante. Por fim, parte pelo mundo e vive o seu próprio romance de cavalaria. Enquanto narra os feitos do Cavaleiro da Triste Figura, Cervantes satiriza os preceitos que regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis.
   A intenção do autor, ao escrever Dom Quixote, era satirizar a novela de cavalaria, que tinha sido muito popular na Europa há uns 300 anos atrás e que no momento estava em decadência por não se enquadrar mais nos padrões sociais vigentes. E acabou retratando o perfil de um homem simples que se divide entre a fantasia e a realidade a partir da leitura de inúmeros romances da cavalaria. Dom Quesada, de tanto ler novelas de cavalaria, passa a se comportar como um deles. É quando surge Dom Quixote.
   Os comentários que farei serão pautados na versão preparada pela editora Scipione, série Reencontro, edição de 1999, cuja adaptação feita por José Angeli permite ao adolescente a percepção da beleza desta e obra literária em uma linguagem mais leve, própria para a idade. E recomendo firmemente a leitura dessa versão, disponível nas livrarias e bibliotecas. Mais tarde, você poderá ler a versão integral de Dom Quixote.
   Retomando ao início, como perceber em Dom Quixote as regras da cavalaria andante que ele vai obedecer fielmente. Vejamos alguns exemplos ao longo da obra.

a) Todo o cavaleiro andante precisa de um cavalo e de uma armadura: “Rebuscando o sótão de sua casa, encontrou uma velha e enferrujada armadura que havia pertencido a um bisavô... Depois de paciente trabalho, raspando a ferrugem... conseguiu uma armadura completa, ainda que de precária eficiência. [...} Vencida esta etapa, foi em busca do seu cavalo, pois, mesmo para um espírito perturbado, era impossível existir um nobre cavaleiro sem montaria. Ele possuía um pangaré que era usado nos serviços do sítio. Apesar de magro e feio, pareceu um belo garanhão aos olhos do fidalgo. Depois de muito pensar, deu-lhe o nome de Rocinante. Esse nome pareceu-lhe sonoro e adequado.” – páginas 7 e 8 –

b) Todo o cavaleiro andante precisa de uma paixão: “Tudo preparado para a partida, percebeu que lhe faltava apenas encontrar uma nobre dama para apaixonar-se. Um cavaleiro andante sem amores era uma arvore sem frutos, um corpo sem alma. Se, por azar ou sorte, derrotasse um gigante, teria que enviá-lo à sua amada para que servisse como escravo. Esse era o procedimento da nobre cavalaria andante e Dom Quixote queria seguir, fielmente, seus costumes. (...) Num passado distante havia amado, em discreto silêncio, uma robusta camponesa que, por morar num povoado vizinho e ter outros interesses, jamais se dera conta daquela secreta paixão. Chamava-se Aldonça Lourenço, mas ao fidalgo pareceu melhor dar-lhe outro nome. Era uma princesa e deveria chamar-se Dulcinéia.” – página 8 –

c) Todo o cavaleiro andante não se prende a bens materiais: Dom Quixote, ao se aproximar de uma estalagem, sendo que na cabeça do cavaleiro ele imaginava ser um castelo. O estalajadeiro, percebendo a loucura, entra no jogo. Contudo, se preocupa em relação a um possível calote na hora de Dom Quixote pagar sua hospedagem. É quando Dom Quixote respondeu-lhe “ que não, e que nunca havia lido em livro algum, que os cavaleiros andantes carregassem as mundanas e desprezíveis moedas.” – página 12 –
   Um outro episódio referente a esta regra da cavalaria ocorre após um episódio em que Dom Quixote e Sancho Pança estão com poucos alimentos na bolsa. No caso, possuem apenas “uma cebola, um pouco de queixo e alguns nacos de pão.”. O escudeiro reclama. Porém, Dom Quixote afirma que “os cavaleiros andantes não ligam para as coisas materiais... A comida mais frugal pode se transformar num manjar digno dos deuses” – página 34 –

d) O verdadeiro palácio de um cavaleiro é o verde da natureza: Numa das andanças de Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança após se afasteram de um castelo, afirma: “Este é, meu caro Sancho, o verdadeiro palácio de um cavaleiro andante.” – página 120 –

   Para encerrar, gostaria de reproduzir trechos de “A incrível batalha contra os moinhos de vento” – páginas 25 a 28, também da citada versão para adolescentes para que possamos por em prática a teoria acima desenvolvida.

   Depois de cavalgarem algumas horas, chegaram a um grande campo onde se viam entre trinta e quarenta moinhos de vento.
   A sorte vem-nos guiando melhor do que poderíamos desejar – disse Dom Quixote, segurando seu cavalo. – Vê, meu fiel Sancho: diante de nós estão mais de trinta insolentes gigantes a quem penso dar combate e matar um por um. Com seus despojos iniciaremos nossa riqueza, além de arrancar essas sementes ruins da face da terra. Essa é a ordem de Deus que devemos cumprir.
   - Que gigantes? – perguntou Sancho Pança, que por mais que examinasse o terreno só via os inocentes moinhos de vento agitanto suas pás vagarosamente.
   - Aqueles que ali vês – respondeu o amo. – Tem os braços tão longos que alguns devem medir mais de duas léguas...
   - Olhe bem Vossa Mercê – contestou Sancho. – Aquilo não são gigantes e sim moinhos de ventos, e o que parecem braços são as pás que, movidas pelo vento, fazem girar a pedra que mói os grãos.
   - Bem se vê que não tens prática nessas aventuras. São gigantes e, se tens medo, afasta-te daqui. O melhor é que fiques rezando enquanto me atiro a essa feroz e desigual batalha.
   E, dizendo isso, esporeou o pangaré sem atender aos apelos do escudeiro, certo de que combatia ferozes gigantes.
   - Não fujais, covardes e abjetas criaturas! Sois atacadas por somente um cavaleiro!.
   Enquanto galopava contra o primeiro moinho, o vento aumentou de intensidade fazendo girar as pás com maior velocidade.
   - Não adianta agitar os braços. Havereis de me pagar! – gritou, atirando-se contra o “inimigo” mais próximo, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia.
   Foi a conta. Ao cravar a lança numa das pás do moinho, a força do impacto reduziu-a a pedaços, atirando o cavaleiro e cavalo a distância. Sancho Pança acorreu em socorro, seu alquebrado jumento trotejando grotescamente.
   - Valha-me Deus! – disse Sancho - Não vos avisei que olhásseis bem para o que íeis fazer? Que eram moinhos e não gigantes? Como é que alguém pode-se enganar assim.
   Enquanto ia falando, o gordo escudeiro tentava levantar tanto o cavaleiro quanto o cavalo, pois o velho Rocinante continuava atordoado pela violência da pancada.
   - Cala-te, amigo – respondeu Dom Quixote. – Esses são os azares da guerra. Eram gigantes, agora são moinhos. Essa foi mais uma sábia picardia do sábio Frestão – aquele que roubou meus livros! – Só assim poderia roubar-me a glória de tão magnífica vitória. Mais ainda tirarei vingança de suas artes diabólicas com a justeza da minha espada!
    [...]
   Apesar dos arranhões e escoriações sofridas, o que mais entristecia Dom Quixote era a perda de sua lança. Como poderia um verdadeiro cavaleiro andante andar sem sua nobre arma? Enquanto cavalgava, seuido pelo seu fiel escudeiro, o fidalgo lembrou-se de que, outrora, o cavaleiro espanhol Diogo Peres de Vargas havia quebrado sua espada numa batalha e a substituira por um grosso galho de carvalho. Assim armado, combatera e vencera muitos mouros, o que lhe valera a glória e o respeito de todos os seus descendentes.
   - Farei o mesmo – disse ao criado – E podes ter certeza de que me sairei tão bem quando Dom Vargas.
   [...]
   - Realmente, estou um tanto dolorido. Só não me queixo por que isso não fica bem para um cavaleiro andante. Mesmo que minhas tripas estivessem saindo pelos ferimentos, jamais soltaria um ai sequer.
   [...]
   Seguiram sua rota. Sancho Pança, escarrapachado sobre o lombo do jumento, mastigava algumas provisões que trazia nos alfojes, entremeadas por longos goles de vinho que chupava de uma botija. Dom Quixote, para não se rebaixar às simples necessidades humanas, pouco condizentes com os cavaleiros de sua casta, nada comeu. Disse não ter fome.

   Agora é o momento de você colocar em prática o que entendeu. A partir da aventura vivida pelo nosso amado D. Quixote no episódio dos moinhos de vento, responda as questões abaixo, sempre ilustrando o aspecto teórico ao episódio citado.

1) É possível perceber nessa aventura - D. Quixote e os moinhos de vento -  a presença de algumas regras da cavalaria andante. Cite pelo menos duas leis e exemplifique.
2) Explique com suas palavras como se dá a mescla entre realidade e fantasia por parte do nosso herói no episódio em estudo.
3) Explique como a religiosidade se apresenta na condução das personagens no episódio em estudo.
4) Em que momentos da narrativa a ficção se faz presente?
5) Como a idealização amorosa se faz presente na narrativa em análise?
6) Como a construção de um perfil heroico se apresenta na narrativa que acabamos de analisar?
   Se você respondeu e justificou suas respostas às questões acima, você terá entendido como as personagens das novelas de cavalaria medieval eram retratados, ainda que tenhamos analisado essas características literárias em uma obra produzida para satirizar as novelas de cavalaria ao criar um herói bem diferente do herói existente nas novelas. Mesmo atrapalhado, a visão idealista e ética de Dom Quixote foi mantida.
   Fica a lição para nós. Ainda que todos pensem que nós sejamos quixotecos, lutemos por aquilo que  acreditamos. Assim como Dom Quixote creu em um modelo de sociedade não mais compatível com a época em que viveu e lutou pelo que acreditava, lute você também pelos seus ideais.
   Afinal, nossos sonhos nos fazem viver.

Fernando Fernandes

terça-feira, 16 de agosto de 2011

1º ANO - TROVADORISMO: UMA INTRODUÇÃO

   A imagem que temos sobre o período medieval foi, em parte, construída pela arte e pela literatura do período. Por exemplo, as novelas de cavalaria e as cantigas de amor nos revelam um padrão cortês de comportamento, em que a figura masculina trata a mulher de forma elegante. Inclusive os desenhos animados reproduzem essa situação, quando a dama,  prestes a pisar na lama,  o cavalheiro retirava sua capa  e a estendia no chão para que os pés dela não sujassem.  Entretanto, é mister que entendamos o contexto histórico e social da Idade Média.
    Qual era a expectativa de vida das pessoas naquela época? Será que eles, na média, viviam mais tempo do que nós? E em relação à qualidade de vida? Guardadas as devidas proporções, quem vivia melhor? Eles ou nós? Essa resposta, por certo, você sabe.
    Após a morte do imperador francês Carlos Magno em 814,  desencadeou o enfraquecimento do poder central e  a sociedade daquele período foi obrigada a se organizar em torno dos grandes proprietários de terras, os senhores feudais. Por outro lado, o cristianismo já estava aliado ao governo romano desde que Constantino promoveu a oficialização dessa religião. Dessa forma, temos no topo da pirâmide social a figura do rei (intermediário entre Deus e o povo). Esse sistema social e político dominante na época ficou conhecido como feudalismo, cujo nome provém da palavra feudo (que consistia apenas de uma aldeia e centenas de acres de terra arável que a circundavam onde o povo trabalhava sem,contudo, ser o proprietário).  A nobreza e o clero, proprietários do feudo, eram muitos solidários entre si  a ponto de o clero reservar a membros da aristocracia os postos mais importantes da Igreja medieval. Papas, arcebispos e bispos procediam da nobreza. O clero detinha o poder espiritual e o poder material. O senhor feudal, também chamado de suserano, era dono das terras e das pessoas que nela trabalhavam. Consequentemente, conservava o poder sobre a força de trabalho dessas pessoas: o povo vivia sob o regime da servidão. Esse camponês, ao mesmo tempo que era explorado, recebia proteção.
   Até aqui, discutimos os papeis do rei, da nobreza,  do clero e do camponês  na sociedade medieval.
   Um outro elemento da sociedade medieval era a cavalaria. Ao mesmo tempo que muitos eram  explorado pelo suserano, dependia de sua proteção. Em caso de ataque, o senhor lhe dava refúgio em seu castelo. E os ataques eram frequentes na época, pois toda a organização da sociedade feudal baseava-se na propriedade da terra, que era disputada através de constantes batalhas. Para proteger sua propriedade o senhor feudal contratava cavaleiros, que eram pagos não em dinheiro, mas através da concessão de pequenas extensões de terra. Surgiu daí um sistema de compensação: o cavaleiro protegia o feudo, e o senhor fornecia-Ihe terras.
   Desse sistema despontou a figura do vassalo - que vivia sob a dependência do senhor e do qual o senhor também dependia para manter sua segurança, fortuna e prestigio.
   A essa dependência entre senhor e vassalo dá-se o nome de vassalagem, termo que nos interessa bastante no estudo da literatura da época. A vassalagem supõe uma série de obrigações do vassalo para com o senhor e vice-versa.
   Servos da Igreja e dos senhores feudais, os camponeses, viviam precariamente e sem aspiração a mudanças num mundo em que Deus era considerado o criador, ordenador do universo e centro de todas as coisas. Para a igreja, cuja influência era muito grande naquele período, a Terra era visto como algo maligno.  
     No período conhecido como Alta Idade Média (séculos XII e XIII), o poder da Igreja medieval era tão grande a ponto do papa Inocêncio III (século 1198-1216) afirmar que "...os  príncipes têm poder na terra, os sacerdotes, sobre a alma. E assim como a alma é muito mais valiosa do que o corpo, assim também mais valioso é o clero do que a monarquia [...]. Nenhum rei pode reinar com acerto a menos que sirva devotamente ao vigário de Cristo...".
    Uma importante manifestação do poder da Igreja medieval era seu controle quase absoluto da produção cultural. Em uma época em que apenas 2% da população europeia era alfabetizada, a escrita e a leitura estavam praticamente restritas aos mosteiros e abadias. Os religiosos reproduziam ou traduziam textos sagrados do cristianismo e obras de grandes filósofos da Antiguidade como Platão e Aristóteles. E considerando que a circulação dos textos dependia da sua reprodução manuscrita, quase sempre feita sob encomenda, a divulgação da cultura tornava-se ainda mais difícil porque o número de cópias em circulação era pequeno. O cenário apresentado no filme "O Nome da Rosa" ilustra muito bem isso. Em um mosteiro, uma série de mortes é desencadeada em função da leitura proibida de uma determinada obra produzida por Aristóteles. Quem folheava a obra, morria envenenado em função do arsênico que era passado nas páginas.
    O uso do latim como língua literária, outra herança do longo período de dominação romana na Europa, também contribuía para dificultar o acesso aos textos. Poemas e canções eram compostos em latim por monges eruditos que vagavam de feudo em feudo e, deste modo, divulgavam suas composições. A maior parte dessa produção abordava temas religiosos.
   Vivia-se em função da morte. A renúncia aos bens materiais e aos prazeres terrenos era a condição exigida para alcançar a salvação eterna, o Paraiso. O lado humano e material das coisas deveriam sempre estar num plano inferior, abaixo da salvação da alma, considerada a  preocupação maior do homem medieval.   Pelo menos era isso que se fazia acreditar ao homem do povo.
   Em resumo: a felicidade não estaria aqui "embaixo"; e a morte seria apenas um fato transitório, já que se admitia, sem discussão, a imortalidade da alma. O verdadeiro problema, então, era saber se as pessoas teriam ingresso na vida eterna depois de abandonar a vida terrena, reino da imperfeição, da desigualdade, do pecado, dos prazeres efêmeros. Dessa forma, a moral, as conquistas sociais, os padrões de conduta eram focados pela ótica religiosa e como reflexo da providência divina - já que Deus conduz todas as coisas a ponto de ser considerado transgressão a Deus o fato de alguém querer melhorar de vida. Daí o teocentrismo (palavra composta de teos = Deus + centrismo). Deus é o centro do universo e a medida de todas as coisas. A Igreja representa Deus no mundo terreno; a autoridade da Igreja domina, por isso, o mundo medieval.
       Em relação à literatura, o  século XII, o período das grandes invasões na Europa havia passado e isso permitiu o ressurgimento das cidades, o progresso econômico e o intercâmbio cultural. Os cavaleiros viram-se de uma hora para outra sem função social. Novos papeis foram criados para a cavalaria e a solução desse problema veio  com a compilação de um código de comportamento amoroso, que ficou conhecido como amor cortês, idealizado por  Guilherme IX, nobre e senhor de um dos mais poderosos feudos da Europa. Nessse código, houve a transferência da relação de vassalagem entre cavaleiros e senhores feudais para o louvor às damas da sociedade. O paralelismo é o seguinte: o eu-lírico masculino corresponde ao vassalo; a dama corresponde ao senhor feudal.
   É nesse contexto histórico e social da Idade Média que surge o primeiro movimento literário, o primeiro estilo de época da Língua Portuguesa: o Trovadorismo, poesias cantadas,  em uma modalidade da Língua Portuguesa bem diferente daquela que usamos atualmente.  Na origem nobre do Trovadorismo, em seu contexto de produção e circulação, no público a que se destinava e na linguagem utilizada, podemos identificar elementos definidores de seu projeto literário: legitimar, por meio da literatura, uma nova ordem que redefinisse as funções sociais dos cavaleiros medievais.
   Nas cortes dos senhores feudais, centros de atividade artística da Europa medieval, se exibiam os jograis: recitadores, cantores e músicos ambulantes que eram contratados pelo senhor para divertir a corte. As cantigas apresentadas pelos jograis eram compostas, quase sempre, por nobres que se denominavam trovadores, porque praticavam a arte de trovar.
   Retomando o amor cortês, a lírica (poemas) trovadoresca é uma poesia da sociedade. O seu forte convencionalismo pode ser mais bem entendido se lembrarmos da interação constante entre um trovador e seu público. Por esse motivo, os termos que definiam as relações feudais foram transpostos para as cantigas, caracterizando a linguagem do Trovadorismo: a mulher era a senhora, o homem era o seu servidor; prezava-se a generosidade, a lealdade e, acima de tudo, a cortesia. A avareza e a vilania eram comportamentos desprezados que desqualificavam o trovador diante da corte. O amor era visto como uma forma de sublimação dos desejos que transformavam o trovador em um homem cortês. A dama era vista sob uma perspectiva idealizada, de perfeição absoluta.
    Nosso ponto de partida será 1189, quando foi composta a cantiga mais antiga que se tem notícia em língua portuguesa - a cantiga da Ribeirinha - considerando a história de Portugal, país cuja independência ocorreu em 1143. Nesse momento, damos início ao nosso curso de Literatura em Língua Portuguesa.
   A interação entre poesia e música permitiam a divulgação dos textos medievais de forma oral. Para tanto, as estruturas linguísticas eram bem simples tais como o verso curto, rimas e paralelismo de ideias.
  Considerando a produção cultural na Europa medieval, pouquíssimos eram os que sabiam ler e escrever em função de haver uma retenção do conhecimento nos mosteiros e abadias. Mas isso não impediu que manifestações culturais ocorressem fora do ambiente religioso. Um desses exemplos são chamadas cantigas medievais, que nada mais eram do que poemas cantados. Seus compositores eram denominados trovadores.

 Tradicionalmente, as cantigas, produção poética cantada, são divididas em quatro grandes temas e serviam como instrumento de lazer das comunidades que a curtiam. Não pretendo esgotar o assunto. Apenas, dialogar sobre o assunto.

a) Cantigas de amor – que exprimem a paixão infeliz, o amor não correspondido em que um eu-lírico masculino e sua interlocutora, o alvo do seu amor. Nesse sentido, a figura feminina acaba ocupando posição de superioridade em relação a quem se declara. Possui origem provençal e reflete as relações políticas da elite.

b) Cantigas de amigo – o trovador assume a postura do eu-lírico feminino em um ambiente de saudade do amado que está ausente por algum motivo relevante. Ou apenas, há a demora em dar notícias. A voz saudosa, normalmente, busca um confidente que pode ser uma amiga ou mesmo um ser da natureza. Possui origem popular e reflete situações do cotidiano da população.

c) Cantigas de escárnio – é definida como sendo aquela feita pelos trovadores para dizer mal de alguém por meio de ambiguidades, trocadilhos e jogos semânticos para que o alvo das críticas não seja reconhecido. Tudo isso para o exercício da imaginação.

d) Cantigas de maldizer – é caracterizada pela identificação da pessoa satirizada e pela alusão crítica direta. O trovador não hesita em incorrer em irreverência para que o humor seja estampado.

   Em outras postagens, teremos a análise de quatro cantigas medievais (inclusive a cantiga da Ribeirinha, a cantiga mais antiga em língua portuguesa será analisada), sempre relacionadas ao seu contexto de origem e com a aplicação prática a algo do nosso cotidiano.

Fernando Fernandes


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

1º ANO - ANÁLISE DE DUAS CANTIGAS SATÍRICAS

   Neste espaço, vamos analisar duas cantigas satíricas, sendo a primeira um exemplo de cantiga de escárnio e a segunda uma cantiga de maldizer. Recordemos que as cantigas de escárnio possuem um tom de crítica muito mais leve além de o anonimato do alvo da crítica enquanto as cantigas de maldizer trazem um tom de crítica mais pesado e a revelação do alvo da crítica. Tudo isso, na teoria. Na prática, penso que basta a percepção de uma situação específica trabalhada com qualquer dos elementos citados, ainda que não se encaixe exatamente no perfil de um ou de outro tipo de cantiga satírica.
   Leiamos as cantigas.
  
 Texto 1 – Exemplo de cantiga de escárnio, da autoria de Martim Soares – século XIII

Uma dona, não vou dizer qual,
teve um forte agouro,
pelas oitavas de Natal:
saía de casa para ir à missa,
mas ouviu um corvo carniceiro
e não quis mais sair de casa.

A dona, de um coração muito bom,
ia à missa
para ouvir seu sermão,
mas veja o que a impediu:
ouviu um corvo sobre si
e não quis mais sair de casa.
A dona disse: - E agora?
O padre já está pronto
e irá maldizer-me
se não me vir na igreja.
E disse o corvo: - Quá a cá
e ela não quis mais sair de casa.

Nunca vi tais agouros,
desde o dia em que nasci,
como o que ocorreu neste ano por aqui:
ela quis tentar partir,
mas ouviu um corvo sobre si
e não quis mais sair de casa.

   Texto 2 – Exemplo de cantiga de maldizer, da autoria de Joan Airas de Santiago – Século XIII

Foi um dia Lopo jogral
Cantar na casa de um fidalgo
E deu-lhe este em pagamento
Três coices na garganta,
E até foi moderado, a meu ver,
Pelo jeito como ele canta.

E tratou-o com moderação
Ao dar-lhe tão poucos coices,
Pois não deu a Lopo então
Mais de três em sua garganta
E mais merecia o jogralão,
Pelo jeito como ele canta.

   Os textos são relativamente fáceis e se parecem muito em relação ao que está sendo proposto.

   No texto 1, o trovador brinca com a ambiguidade das palavras ao criar uma metáfora para a palavra corvo. Essa ave de rapina, segundo o trovador, é a causa do esfriamento da fé da mulher citada. Por medo do corvo carniceiro, a mulher deixa de ir às missas. E esse pavor teve início próximo ao natal, quando a mulher teve um mau pressentimento. Observe que há anonimato, jogos semânticos (o que justifica a ambiguidade provocada pelo uso da palavra corvo – animal/pessoa) e o espanto por parte do eu-lírico, já que ele se admira da situação inusitada apresentada.
   No texto 2, o trovador apresenta uma situação humorada, é verdade. Contudo, as palavras já são mais diretas e as ambiguidades já não aparecem. Quem está sendo criticado é o jogral Lopo (aqui, sinônimo de grupo vocal musical) por cantar mal. E como recompensa, Lopo, o responsável pelo conjunto, recebeu do fidalgo que provavelmente o contratou três coices na garganta. O eu-lírico lamenta e sugere que o grupo mereceria muito mais coices.

  Para concluir esse diálogo, leiamos a letra de uma canção contemporânea com teor satírico. Se você se interessar, pode ouvi-la na internet. 

Pega eu - Bezerra da Silva  

-"Vagabundo é mala
Mas dessa vez
Ele não se deu bem
Foi assaltar casa de pobre
Vê só o que aconteceu"

O ladrão foi lá em casa
Quase morreu do coração
O ladrão foi lá em casa
Quase morreu do coração...
Já pensou se o gatuno
Tem um infarto, malandro?
E morre no meu barracão
Eu não tenho nada de luxo
Que possa agradar um ladrão
É só uma cadeira quebrada
Um jornal que é meu colchão
Eu tenho uma panela de barro
E dois tijolos como um fogão
O ladrão ficou maluco
De vê tanta miséria
Em cima de um cristão
Que saiu gritando pela rua

Pega eu que eu sou ladrão!
Pega eu!
Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão
Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão!

Não assalto mais um pobre
Nem arrombo um barracão

Por favor, pega eu!
Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão

Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão!

O lelé da cuca
Ele está no pinel
Falando sozinho de bobeação
Dando soco nas paredes
E gritando esse refrão

Pega eu!
Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão

Pega eu!
Pega eu que eu sou ladrão
Não assalto mais um pobre
E nem arrombo um barracão...


   Pelo que foi colocado anteriormente e a partir da canção sobre alguém que revela sua experiência em um assalto que sofreu...
   Há ou não há ambiguidade, jogo de palavras?
   Há alguma crítica social subtendida?
   Quem está sendo criticado está sendo claramente revelado?
   Essa canção se encaixa em algum tipo de cantiga satírica, ainda que contemporânea?

 Fernando Fernandes

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

1º ANO - ANÁLISE DE UMA CANTIGA DE AMIGO MEDIEVAL

   Gostaria de, nesse espaço, porpor uma nova dinâmica para o contexto das cantigas de amigo.
   Quantas vezes sua mãe já ficou desesperada em casa simplesmente porque você se atrasou (muito ou pouco) ao chegar em casa do colégio? Você já pensou no que provoca nela esse desespero (é claro que as pessoas reagem de formas diferentes)? É o amor dela que dispara essa insegurança, por mais que ela confie em você. Afinal, a violência está à solta. Ou então, em um relacionamento amoroso, em que o rapaz promete ligar para a moça e, por qualquer motivo, a ligação não acontece. Ela começa a se inquietar e a pensar um monte de bobagem, inclusive que ela não é amada. No outro dia, ele liga ou se encontra com ela e se justifica e ela descobre que faz papel de boba.
   Esses dois exemplos do cotidiano são bons exempos do que ocorria no enredo das cantigas de amigo. A ausência de notícias provocava uma intranquilidade, uma insegurança. Em maior ou em menor grau. E quando revelada, poderia ser como as cantigas de amigo se apresentam.
   Foi dito na última postagem que as cantigas de amigo são canções em que uma voz feminina expressa a saudade do amado, ausente por motivo relevante ou por não envio de notícias. E se desabafa com alguém ou com algo da natureza.
  Naquele período, o homem se ausentava de casa por questões profissionais, seja a guerra, seja a caça. E a demora em relação às notícias poderia gerar um sentimento de insegurança por parte de quem o espera de volta. Daí o lamento e o desejo do retorno do amado. Observe a cantiga de amigo transcrita a seguir da autoria de João Garcia de Guilhade, trovador português do século XIII.


Ai flores, ai flores do verde pino,
vocês trazem novas do meu amigo!
Ai Deus, onde está ele?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
vocês trazem novas do meu amado!
Ai Deus, onde está ele?

Se sabem novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo!
Ai Deus, onde está ele?

Se sabem novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me foi prometido!
Ai Deus, onde está ele?

Você me pergunta pelo vosso amigo,
e eu bem tes digo que está são e vivo:
Ai Deus, onde está ele?

Você me pergunta pelo vosso amado,
e eu bem te digo que ele está vivo e são:
Ai Deus, onde está ele?

E eu bem te digo que ele está vivo e são:
e estará contigo no prazo combinado:
Ai Deus, onde está ele?

E eu bem te digo que está vivo e são
e estará contigo no prazo acertado:
Ai Deus, onde está ele?

   A cantiga tem início com a apresentação do cenário ligado à natureza e o próprio eu-lírico feminino se dirige às flores do verde pinho ara saber notícias do amado. A expressão que repete ao longo da cantiga representada pelo último verso de cada estrofe revela a saudade dela pelo amado. Há um prazo estabelecido para um reencontro. Contudo, a insegurança da voz feminina faz com que ela se desabafe. O interlocutor (as flores do verde pinho) a tranquiliza, lembrando a ela que nada de mais aconteceu e que no momento estabelecido o reencontro acontecerá.

   Percebeu como as três situações são semelhantes? A arte, de alguma forma, espelha o social. E se aquele contexto veio a ser retratado pela literatura é porque era relevante para aquele povo.

Fernando Fernandes

1º ANO - ANÁLISE DE UMA CANTIGA DE AMOR MEDIEVAL

   Nesse espaço, analisaremos a mais antiga cantiga de amor produzida em língua portuguesa, a cantiga da Ribeirinha, em paralelo a uma canção contemporânea, Tá vendo aquela lua, do grupo Exaltasamba. Antes, um pequeno suporte teórico.
   Considerando a produção cultural na Europa medieval, pouquíssimos eram os que sabiam ler e escrever em função de haver uma retenção do conhecimento nos mosteiros e abadias. Mas isso não impediu que manifestações culturais ocorressem fora do ambiente religioso. Um desses exemplos são chamadas cantigas medievais, que nada mais eram do que poemas cantados. Seus compositores eram denominados trovadores.
    Recordemos as características básicas de uma cantiga de amor. Há a expressão de uma paixão infeliz, um amor não correspondido vivido pelo eu-lírico masculino em relação a sua interlocutora, o alvo do seu amor. Na sequência, o que será denominado de texto 1 é a cantiga da Ribeirinha e texto 2 a canção do Exaltasamba.
    Comecemos a análise.

Texto 1 – Cantiga da Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim
enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate
quando vos vi sem manto!
Maldito dia! me levantei
que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de bom Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós o manto
pois eu, minha senhora, como mimo
de vós nunca recebi
algo, mesmo sem valor.

Texto 2 – Tá vendo aquela lua

Te filmando, eu tava quieto no meu canto:
Cabelo bem cortado, perfume exalando
Daquele jeito que eu sei que você gosta,
Mas eu te dei um papo e você nem deu resposta.
Tudo bem! Um dia vai o outro vem!...
Você deve estar pensando em outro alguém,
Mas se ele te merecesse não estaria aqui.
Não!... Não!... Não!...
Ou talvez você não queira se envolver.
Magoada, tá com medo de sofrer.
Se me der uma chance não vai se arrepender.
Não! Não! Não! Não! Não!
Tá vendo aquela lua que brilha lá no céu?
Se você me pedir, eu vou buscar só pra te dar.
Se bem que o brilho dela nem se compara ao seu.
Deixa eu te dar um beijo! Vou mostrar o tempo que perdeu.
Que coisa louca, eu já sabia!
Enquanto eu me arrumava algo me dizia:
"Você vai encontrar alguém que vai mudar
A sua vida inteira da noite pro dia!"
Tá vendo aquela lua que brilha lá no céu?
Se você me pedir, eu vou buscar só pra te dar.
Se bem que o brilho dela nem se compara ao seu.
Deixa eu te dar um beijo! Vou mostrar o tempo que perdeu.
Que coisa louca, eu já sabia!
Enquanto eu me arrumava algo me dizia:
"Você vai encontrar alguém que vai mudar
A sua vida inteira da noite pro dia!"

   O texto 1 deixa bem claro como as relações hierárquicas praticadas no período medieval são trazidas para a arte. Dessa forma, o senhor feudal é equivalente à mulher; o vassalo, ao eu-lirico masculino. É simples perceber isso na cantiga, pois a simples leitura deixa evidente que a voz masculina viveu um antes e um depois: o antes até o momento que ele presenciou aquela dama sem as roupas, digamos assim, de sair. Ele a viu em trajes em que normalmente damas não eram vistas. Não significa que ela estivesse vestida de forma indecente. É como se um aluno tivesse a chance de ver uma colega sua de sala em trajes diferentes daqueles que ele a vê diariamente, no caso, o uniforme. Voltando à cantiga, o eu-lírico percebe nela uma beleza não antes notada. Aí vem o depois. Ele se apaixona ao afirmar que ele não a viu mais feia (isto é, a viu mais bonita) e se lamenta por não receber nenhum olhar de esperança que seja, metaforizado pelos dois versos finais da cantiga. A mulher, então, é colocada em um plano superior, já que a felicidade do eu-lírico masculino dependerá da concordância da dama em aceitá-lo. Por isso, a mulher equivale ao senhor feudal; o eu-lírico masculino, ao vassalo.
   O texto 2, apesar de ser uma canção contemporânea, reflete a mesmíssima circunstância. Começa com um eu-lírico masculino (a leitura atenta da canção permite essa conclusão) que tenta uma aproximação, mesmo supondo que a amada possui outra pessoa ocupando a mente e o coração ou mesmo o receio de um novo envolvimento amoroso. Por fim, ele se declara prometendo a lua a ela, ainda que o brilho da lua seja inferior ao brilho da amada.
   A mesma postura se repete. O eu-lírico masculino se coloca na situação de vassalo, pois sua felicidade depende de quem ele ama. É a figura feminina quem dá as cartas, pois ela está em posição superior.
   Em ambos os textos, analisaremos mais quatro coincidências.
   A) O subjetivismo – em ambos há um mundo interior sendo colocado para fora, isto é, o eu-lírico masculino age conforme o seu interior, o seu sentimento, o seu desejo, a sua necessidade em ser feliz;
   B) A idealização feminina – em ambos, a mulher é vista como ser perfeito, alguém capaz de saciar a fome de amor e carinho. No texto 1, o eu-lírico masculino não recebe nem migalhas de quem ele considera linda. No texto 2, a associação do brilho da lua. Por mais que o eu-lírico consiga trazer a lua para a amada, tem consciência da limitação de seu brilho em relação à amada.
   C) O egocentrismo – caracterizado por atitudes e comportamentos em que apenas a visão do “eu” é considerada, temos o seguinte nas duas canções: por interpretação primeira, o desejo do eu-lírico se sobrepõe ao desejo das respectivas mulheres. Isto é, não são consideradas as possibilidades de que elas não queiram o relacionamento e que a felicidade delas possa estar em outras pessoas que não sejam as respectivas vozes masculinas.
    D) A coita amorosa - Coita é sinônimo de dor, a dor do amor não correspondido. Nesse sentido, ambos os textos apresentam esse lamento. Na cantiga da Ribeirinha, quando o eu-lírico afirma textualmente "e morro por vós, e ai!". Na canção do Exaltasamba, a repetição da palavra "não", já que o eu-lírico não admite ficar sem a amada.
   Sem maiores considerações, vamos parar por aqui. A realidade encontrada nas cantigas de amor medievais são equivalentes a aquelas encontradas nos tradicionais poemas e canções de cunho romântico em que um eu-lírico masculino ou feminino revela sua incapacidade de viver sem a presença daquele(a) que o(a) ama. Variam as diferentes condições de produção, composição e divulgação das ideias porque analisamos uma mesma temática aplicada a diferentes épocas e  a diferentes culturas.
    Contudo, a necessidade de amar e ser amado continua. 

Fernando Fernandes

1ºs anos-todos - O Nome da Rosa: texto e questões para reflexão

   É importante deixar bem claro que não queremos questionar sua fé ou sua religião. Os fatos que iremos discutir nas próximas aulas são históricos, comprovadamente ocorreram e são importantes para que possamos entender a importância e a riqueza da produção literária. Fomos colonizados pelos europeus. Nossas primeiras manifestações artísticas estiveram totalmente ligadas às tradições europeias, por isso a necessidade de entender como se formou a cultura e a visão de mundo da Europa.
   Já fizemos uma visita às principais características da Antiguidade Clássica e discutimos como os gregos E romanos da Antiguidade Clássica foram importantes para a construção de um pensamento antropocêntrico. A cultura grega é a base de todo o conhecimento que possuímos hoje: da política, da matemática, do direito, da medicina, da astronomia. Contudo, mudanças históricas importantes ocorreram na Europa. O Império Grego entrou em declínio a partir da morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C. Com o passar do tempo, Roma começa a se impor como império por volta dos anos 30 a.C. Basta lembrar que a região em que Jesus Cristo viveu já era província do Império Romano, além de ter seu poder estendido por toda a Europa, Ásia, Norte da África e Oriente Médio. A região que corresponde a Portugal foi colonizada pelos romanos a partir do século III a.C.Mesmo na condição de império, os romanos assimilaram muitos costumes, muitas descobertas realizadas pelos gregos, inclusive na questão religiosa. Assim como os gregos, os romanos eram politeístas e tinham um conjunto de deuses mitológicos.
   Por volta do ano 330 d.C, o Império Romano entra em total decadência moral, por isso, o imperador Constantino decide oficializar uma religião que até então era proibida: o cristianismo. Neste momento, o Império Romano se torna monoteísta e seus deuses pagãos são banidos. Constantino retira os cristãos das catacumbas e cria a Igreja Apostólica Romana. Com o passar dos séculos, a Europa caminha para um período chamado Idade Média e todo o conjunto de conhecimento elaborado pelos gregos na Antiguidade Clássica são considerados pecaminosos e proibidos. Aqueles que se aventurassem a defendê-los era considerado herege e punido com a morte. Neste momento da História, sai de cena a visão antropocêntrica e entra em destaque a visão teocêntrica.
   O filme que iremos assistir conta uma história ocorrida no século XIV, no final da Idade Média nos seguindo um modelo de investigação policial, muito parecido com a série de TV CSI. Pois é, no filme acontece uma investigação sobre várias mortes mal explicadas dentro de um mosteiro. Um monge entra em cena e, sem querer, se vê envolvido nas investigações dessas mortes misteriosas. Tudo bem. Hoje, a concepção de ciência aceita por todos, nos permite um olhar racional sobre as investigações relacionadas a crimes. Mas, como você acha que seria uma investigação criminal feita durante a Idade Média. Será que o pensamento crítico, lógico, racional teria vez em um momento em que a Europa estava mergulhada em dogmas religiosos, em princípios voltados para ideias de paraíso, inferno e purgatório? Atenção, não pense que o filme nos mostrará apenas uma investigação criminal. Ele nos convida a refletir sobre situações históricas, sociais de um momento humano, ocorridas há 700 anos, mas que ainda estão presentes em nossos dias.
   Por isso, reafirmamos o que dissemos no início. Nossa intenção não é desmerecer a fé de ninguém. Mas é entender como um sistema político (seja lá qual for) interfere positivamente ou não no cotidiano da sociedade.
   E aí? Vamos assistir ao filme?

QUESTÕES PARA REFLEXÃO – responder no seu caderno a partir das reflexões no auditório.

A) A partir do filme “O Nome da Rosa, como crença (dogma) e ciência são apresentados? Quem age em função das crenças? E em função da ciência?

B) Em Sociologia, estudamos que a coerção social é a forma pela qual a sociedade inculca os valores do grupo na mente de seus membros para evitar a adoção de comportamento divergente. É um tipo de controle social, ou seja, uma coação exercida sobre indivíduos ou grupos para que eles mudem suas atitudes ou ideias, sempre de acordo com quem detém o poder. Nas aulas de Artes, vimos também que o objetivo da comédia, além do entretenimento (riso), era a tendência a criar situações absurdas e, dentro destas, elaborar uma crítica essencialmente política aos governantes e aos costumes da época. Considerando que na Idade Média o riso era condenado e que o filme que acabamos de assistir possui como tempo da narrativa o período medieval:

   - O que a Igreja mais temia: a ira divina ou a democratização do conhecimento?

   - E que instrumento a Igreja Católica da época medieval usava para exercer a coerção social?

   - Por que o riso era tão perigoso neste contexto? Descreva uma cena do filme em que fica clara a proibição do riso no contexto da Idade Média.

C) A partir da realidade social apresentada no filme, de que forma a mulher era descrita?

D) Em relação às discussões religiosas presentes no enredo, por que era importante definir se Cristo era ou não dono de sua roupa?

E) Qual era a função dos monges que moravam no monastério apresentado no filme? Por que eles morriam?

F) Uma das obras que melhor traduziram para um público amplo a importância de Aristóteles (aristotelismo) para o pensamento cristão da Idade Média foi O nome da rosa(1986), do filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932). Ao final do filme percebe-se a importância da obra um tratado do filósofo grego Aristóteles (384 a.C. / 322 a.C.) sobre como o riso pode auxiliar na busca da verdade. Faça um breve comentário sobre a função da Arte no período medieval comparando essa mesma função aos dias atuais.

    Uma palavra final a vocês.

   A equipe de Sociologia e Língua Portuguesa tem a convicção de que seu tempo empregado na vinda ao colégio fora de horário habitual de aulas foi útil,  pois o filme que assistimos vai além de um momento de lazer.
   Temos por certo de que muitas vendas foram tiradas de nossos olhos. Por exemplo, a censura ao conhecimento que ocorria no período medieval ainda ocorre hoje; a exploração da fé é algo que podemos presenciar cotidianamente; o debate sobre assuntos não prioritários em detrimento do que realmente faz diferença na qualidade de vida da população, infelizmente, ainda é real.
   Há outras vendas. Cabe a cada de um de nós descobri-las e removê-las.
   Um abraço dos(as) professores(as) Léia, Cárlinton, Rogério Póvoa e Fernando Fernandes