quarta-feira, 10 de agosto de 2011

1º ANO - ANÁLISE DE UMA CANTIGA DE AMOR MEDIEVAL

   Nesse espaço, analisaremos a mais antiga cantiga de amor produzida em língua portuguesa, a cantiga da Ribeirinha, em paralelo a uma canção contemporânea, Tá vendo aquela lua, do grupo Exaltasamba. Antes, um pequeno suporte teórico.
   Considerando a produção cultural na Europa medieval, pouquíssimos eram os que sabiam ler e escrever em função de haver uma retenção do conhecimento nos mosteiros e abadias. Mas isso não impediu que manifestações culturais ocorressem fora do ambiente religioso. Um desses exemplos são chamadas cantigas medievais, que nada mais eram do que poemas cantados. Seus compositores eram denominados trovadores.
    Recordemos as características básicas de uma cantiga de amor. Há a expressão de uma paixão infeliz, um amor não correspondido vivido pelo eu-lírico masculino em relação a sua interlocutora, o alvo do seu amor. Na sequência, o que será denominado de texto 1 é a cantiga da Ribeirinha e texto 2 a canção do Exaltasamba.
    Comecemos a análise.

Texto 1 – Cantiga da Ribeirinha

No mundo ninguém se assemelha a mim
enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate
quando vos vi sem manto!
Maldito dia! me levantei
que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!
Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de bom Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós o manto
pois eu, minha senhora, como mimo
de vós nunca recebi
algo, mesmo sem valor.

Texto 2 – Tá vendo aquela lua

Te filmando, eu tava quieto no meu canto:
Cabelo bem cortado, perfume exalando
Daquele jeito que eu sei que você gosta,
Mas eu te dei um papo e você nem deu resposta.
Tudo bem! Um dia vai o outro vem!...
Você deve estar pensando em outro alguém,
Mas se ele te merecesse não estaria aqui.
Não!... Não!... Não!...
Ou talvez você não queira se envolver.
Magoada, tá com medo de sofrer.
Se me der uma chance não vai se arrepender.
Não! Não! Não! Não! Não!
Tá vendo aquela lua que brilha lá no céu?
Se você me pedir, eu vou buscar só pra te dar.
Se bem que o brilho dela nem se compara ao seu.
Deixa eu te dar um beijo! Vou mostrar o tempo que perdeu.
Que coisa louca, eu já sabia!
Enquanto eu me arrumava algo me dizia:
"Você vai encontrar alguém que vai mudar
A sua vida inteira da noite pro dia!"
Tá vendo aquela lua que brilha lá no céu?
Se você me pedir, eu vou buscar só pra te dar.
Se bem que o brilho dela nem se compara ao seu.
Deixa eu te dar um beijo! Vou mostrar o tempo que perdeu.
Que coisa louca, eu já sabia!
Enquanto eu me arrumava algo me dizia:
"Você vai encontrar alguém que vai mudar
A sua vida inteira da noite pro dia!"

   O texto 1 deixa bem claro como as relações hierárquicas praticadas no período medieval são trazidas para a arte. Dessa forma, o senhor feudal é equivalente à mulher; o vassalo, ao eu-lirico masculino. É simples perceber isso na cantiga, pois a simples leitura deixa evidente que a voz masculina viveu um antes e um depois: o antes até o momento que ele presenciou aquela dama sem as roupas, digamos assim, de sair. Ele a viu em trajes em que normalmente damas não eram vistas. Não significa que ela estivesse vestida de forma indecente. É como se um aluno tivesse a chance de ver uma colega sua de sala em trajes diferentes daqueles que ele a vê diariamente, no caso, o uniforme. Voltando à cantiga, o eu-lírico percebe nela uma beleza não antes notada. Aí vem o depois. Ele se apaixona ao afirmar que ele não a viu mais feia (isto é, a viu mais bonita) e se lamenta por não receber nenhum olhar de esperança que seja, metaforizado pelos dois versos finais da cantiga. A mulher, então, é colocada em um plano superior, já que a felicidade do eu-lírico masculino dependerá da concordância da dama em aceitá-lo. Por isso, a mulher equivale ao senhor feudal; o eu-lírico masculino, ao vassalo.
   O texto 2, apesar de ser uma canção contemporânea, reflete a mesmíssima circunstância. Começa com um eu-lírico masculino (a leitura atenta da canção permite essa conclusão) que tenta uma aproximação, mesmo supondo que a amada possui outra pessoa ocupando a mente e o coração ou mesmo o receio de um novo envolvimento amoroso. Por fim, ele se declara prometendo a lua a ela, ainda que o brilho da lua seja inferior ao brilho da amada.
   A mesma postura se repete. O eu-lírico masculino se coloca na situação de vassalo, pois sua felicidade depende de quem ele ama. É a figura feminina quem dá as cartas, pois ela está em posição superior.
   Em ambos os textos, analisaremos mais quatro coincidências.
   A) O subjetivismo – em ambos há um mundo interior sendo colocado para fora, isto é, o eu-lírico masculino age conforme o seu interior, o seu sentimento, o seu desejo, a sua necessidade em ser feliz;
   B) A idealização feminina – em ambos, a mulher é vista como ser perfeito, alguém capaz de saciar a fome de amor e carinho. No texto 1, o eu-lírico masculino não recebe nem migalhas de quem ele considera linda. No texto 2, a associação do brilho da lua. Por mais que o eu-lírico consiga trazer a lua para a amada, tem consciência da limitação de seu brilho em relação à amada.
   C) O egocentrismo – caracterizado por atitudes e comportamentos em que apenas a visão do “eu” é considerada, temos o seguinte nas duas canções: por interpretação primeira, o desejo do eu-lírico se sobrepõe ao desejo das respectivas mulheres. Isto é, não são consideradas as possibilidades de que elas não queiram o relacionamento e que a felicidade delas possa estar em outras pessoas que não sejam as respectivas vozes masculinas.
    D) A coita amorosa - Coita é sinônimo de dor, a dor do amor não correspondido. Nesse sentido, ambos os textos apresentam esse lamento. Na cantiga da Ribeirinha, quando o eu-lírico afirma textualmente "e morro por vós, e ai!". Na canção do Exaltasamba, a repetição da palavra "não", já que o eu-lírico não admite ficar sem a amada.
   Sem maiores considerações, vamos parar por aqui. A realidade encontrada nas cantigas de amor medievais são equivalentes a aquelas encontradas nos tradicionais poemas e canções de cunho romântico em que um eu-lírico masculino ou feminino revela sua incapacidade de viver sem a presença daquele(a) que o(a) ama. Variam as diferentes condições de produção, composição e divulgação das ideias porque analisamos uma mesma temática aplicada a diferentes épocas e  a diferentes culturas.
    Contudo, a necessidade de amar e ser amado continua. 

Fernando Fernandes

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