terça-feira, 16 de agosto de 2011

1º ANO - TROVADORISMO: UMA INTRODUÇÃO

   A imagem que temos sobre o período medieval foi, em parte, construída pela arte e pela literatura do período. Por exemplo, as novelas de cavalaria e as cantigas de amor nos revelam um padrão cortês de comportamento, em que a figura masculina trata a mulher de forma elegante. Inclusive os desenhos animados reproduzem essa situação, quando a dama,  prestes a pisar na lama,  o cavalheiro retirava sua capa  e a estendia no chão para que os pés dela não sujassem.  Entretanto, é mister que entendamos o contexto histórico e social da Idade Média.
    Qual era a expectativa de vida das pessoas naquela época? Será que eles, na média, viviam mais tempo do que nós? E em relação à qualidade de vida? Guardadas as devidas proporções, quem vivia melhor? Eles ou nós? Essa resposta, por certo, você sabe.
    Após a morte do imperador francês Carlos Magno em 814,  desencadeou o enfraquecimento do poder central e  a sociedade daquele período foi obrigada a se organizar em torno dos grandes proprietários de terras, os senhores feudais. Por outro lado, o cristianismo já estava aliado ao governo romano desde que Constantino promoveu a oficialização dessa religião. Dessa forma, temos no topo da pirâmide social a figura do rei (intermediário entre Deus e o povo). Esse sistema social e político dominante na época ficou conhecido como feudalismo, cujo nome provém da palavra feudo (que consistia apenas de uma aldeia e centenas de acres de terra arável que a circundavam onde o povo trabalhava sem,contudo, ser o proprietário).  A nobreza e o clero, proprietários do feudo, eram muitos solidários entre si  a ponto de o clero reservar a membros da aristocracia os postos mais importantes da Igreja medieval. Papas, arcebispos e bispos procediam da nobreza. O clero detinha o poder espiritual e o poder material. O senhor feudal, também chamado de suserano, era dono das terras e das pessoas que nela trabalhavam. Consequentemente, conservava o poder sobre a força de trabalho dessas pessoas: o povo vivia sob o regime da servidão. Esse camponês, ao mesmo tempo que era explorado, recebia proteção.
   Até aqui, discutimos os papeis do rei, da nobreza,  do clero e do camponês  na sociedade medieval.
   Um outro elemento da sociedade medieval era a cavalaria. Ao mesmo tempo que muitos eram  explorado pelo suserano, dependia de sua proteção. Em caso de ataque, o senhor lhe dava refúgio em seu castelo. E os ataques eram frequentes na época, pois toda a organização da sociedade feudal baseava-se na propriedade da terra, que era disputada através de constantes batalhas. Para proteger sua propriedade o senhor feudal contratava cavaleiros, que eram pagos não em dinheiro, mas através da concessão de pequenas extensões de terra. Surgiu daí um sistema de compensação: o cavaleiro protegia o feudo, e o senhor fornecia-Ihe terras.
   Desse sistema despontou a figura do vassalo - que vivia sob a dependência do senhor e do qual o senhor também dependia para manter sua segurança, fortuna e prestigio.
   A essa dependência entre senhor e vassalo dá-se o nome de vassalagem, termo que nos interessa bastante no estudo da literatura da época. A vassalagem supõe uma série de obrigações do vassalo para com o senhor e vice-versa.
   Servos da Igreja e dos senhores feudais, os camponeses, viviam precariamente e sem aspiração a mudanças num mundo em que Deus era considerado o criador, ordenador do universo e centro de todas as coisas. Para a igreja, cuja influência era muito grande naquele período, a Terra era visto como algo maligno.  
     No período conhecido como Alta Idade Média (séculos XII e XIII), o poder da Igreja medieval era tão grande a ponto do papa Inocêncio III (século 1198-1216) afirmar que "...os  príncipes têm poder na terra, os sacerdotes, sobre a alma. E assim como a alma é muito mais valiosa do que o corpo, assim também mais valioso é o clero do que a monarquia [...]. Nenhum rei pode reinar com acerto a menos que sirva devotamente ao vigário de Cristo...".
    Uma importante manifestação do poder da Igreja medieval era seu controle quase absoluto da produção cultural. Em uma época em que apenas 2% da população europeia era alfabetizada, a escrita e a leitura estavam praticamente restritas aos mosteiros e abadias. Os religiosos reproduziam ou traduziam textos sagrados do cristianismo e obras de grandes filósofos da Antiguidade como Platão e Aristóteles. E considerando que a circulação dos textos dependia da sua reprodução manuscrita, quase sempre feita sob encomenda, a divulgação da cultura tornava-se ainda mais difícil porque o número de cópias em circulação era pequeno. O cenário apresentado no filme "O Nome da Rosa" ilustra muito bem isso. Em um mosteiro, uma série de mortes é desencadeada em função da leitura proibida de uma determinada obra produzida por Aristóteles. Quem folheava a obra, morria envenenado em função do arsênico que era passado nas páginas.
    O uso do latim como língua literária, outra herança do longo período de dominação romana na Europa, também contribuía para dificultar o acesso aos textos. Poemas e canções eram compostos em latim por monges eruditos que vagavam de feudo em feudo e, deste modo, divulgavam suas composições. A maior parte dessa produção abordava temas religiosos.
   Vivia-se em função da morte. A renúncia aos bens materiais e aos prazeres terrenos era a condição exigida para alcançar a salvação eterna, o Paraiso. O lado humano e material das coisas deveriam sempre estar num plano inferior, abaixo da salvação da alma, considerada a  preocupação maior do homem medieval.   Pelo menos era isso que se fazia acreditar ao homem do povo.
   Em resumo: a felicidade não estaria aqui "embaixo"; e a morte seria apenas um fato transitório, já que se admitia, sem discussão, a imortalidade da alma. O verdadeiro problema, então, era saber se as pessoas teriam ingresso na vida eterna depois de abandonar a vida terrena, reino da imperfeição, da desigualdade, do pecado, dos prazeres efêmeros. Dessa forma, a moral, as conquistas sociais, os padrões de conduta eram focados pela ótica religiosa e como reflexo da providência divina - já que Deus conduz todas as coisas a ponto de ser considerado transgressão a Deus o fato de alguém querer melhorar de vida. Daí o teocentrismo (palavra composta de teos = Deus + centrismo). Deus é o centro do universo e a medida de todas as coisas. A Igreja representa Deus no mundo terreno; a autoridade da Igreja domina, por isso, o mundo medieval.
       Em relação à literatura, o  século XII, o período das grandes invasões na Europa havia passado e isso permitiu o ressurgimento das cidades, o progresso econômico e o intercâmbio cultural. Os cavaleiros viram-se de uma hora para outra sem função social. Novos papeis foram criados para a cavalaria e a solução desse problema veio  com a compilação de um código de comportamento amoroso, que ficou conhecido como amor cortês, idealizado por  Guilherme IX, nobre e senhor de um dos mais poderosos feudos da Europa. Nessse código, houve a transferência da relação de vassalagem entre cavaleiros e senhores feudais para o louvor às damas da sociedade. O paralelismo é o seguinte: o eu-lírico masculino corresponde ao vassalo; a dama corresponde ao senhor feudal.
   É nesse contexto histórico e social da Idade Média que surge o primeiro movimento literário, o primeiro estilo de época da Língua Portuguesa: o Trovadorismo, poesias cantadas,  em uma modalidade da Língua Portuguesa bem diferente daquela que usamos atualmente.  Na origem nobre do Trovadorismo, em seu contexto de produção e circulação, no público a que se destinava e na linguagem utilizada, podemos identificar elementos definidores de seu projeto literário: legitimar, por meio da literatura, uma nova ordem que redefinisse as funções sociais dos cavaleiros medievais.
   Nas cortes dos senhores feudais, centros de atividade artística da Europa medieval, se exibiam os jograis: recitadores, cantores e músicos ambulantes que eram contratados pelo senhor para divertir a corte. As cantigas apresentadas pelos jograis eram compostas, quase sempre, por nobres que se denominavam trovadores, porque praticavam a arte de trovar.
   Retomando o amor cortês, a lírica (poemas) trovadoresca é uma poesia da sociedade. O seu forte convencionalismo pode ser mais bem entendido se lembrarmos da interação constante entre um trovador e seu público. Por esse motivo, os termos que definiam as relações feudais foram transpostos para as cantigas, caracterizando a linguagem do Trovadorismo: a mulher era a senhora, o homem era o seu servidor; prezava-se a generosidade, a lealdade e, acima de tudo, a cortesia. A avareza e a vilania eram comportamentos desprezados que desqualificavam o trovador diante da corte. O amor era visto como uma forma de sublimação dos desejos que transformavam o trovador em um homem cortês. A dama era vista sob uma perspectiva idealizada, de perfeição absoluta.
    Nosso ponto de partida será 1189, quando foi composta a cantiga mais antiga que se tem notícia em língua portuguesa - a cantiga da Ribeirinha - considerando a história de Portugal, país cuja independência ocorreu em 1143. Nesse momento, damos início ao nosso curso de Literatura em Língua Portuguesa.
   A interação entre poesia e música permitiam a divulgação dos textos medievais de forma oral. Para tanto, as estruturas linguísticas eram bem simples tais como o verso curto, rimas e paralelismo de ideias.
  Considerando a produção cultural na Europa medieval, pouquíssimos eram os que sabiam ler e escrever em função de haver uma retenção do conhecimento nos mosteiros e abadias. Mas isso não impediu que manifestações culturais ocorressem fora do ambiente religioso. Um desses exemplos são chamadas cantigas medievais, que nada mais eram do que poemas cantados. Seus compositores eram denominados trovadores.

 Tradicionalmente, as cantigas, produção poética cantada, são divididas em quatro grandes temas e serviam como instrumento de lazer das comunidades que a curtiam. Não pretendo esgotar o assunto. Apenas, dialogar sobre o assunto.

a) Cantigas de amor – que exprimem a paixão infeliz, o amor não correspondido em que um eu-lírico masculino e sua interlocutora, o alvo do seu amor. Nesse sentido, a figura feminina acaba ocupando posição de superioridade em relação a quem se declara. Possui origem provençal e reflete as relações políticas da elite.

b) Cantigas de amigo – o trovador assume a postura do eu-lírico feminino em um ambiente de saudade do amado que está ausente por algum motivo relevante. Ou apenas, há a demora em dar notícias. A voz saudosa, normalmente, busca um confidente que pode ser uma amiga ou mesmo um ser da natureza. Possui origem popular e reflete situações do cotidiano da população.

c) Cantigas de escárnio – é definida como sendo aquela feita pelos trovadores para dizer mal de alguém por meio de ambiguidades, trocadilhos e jogos semânticos para que o alvo das críticas não seja reconhecido. Tudo isso para o exercício da imaginação.

d) Cantigas de maldizer – é caracterizada pela identificação da pessoa satirizada e pela alusão crítica direta. O trovador não hesita em incorrer em irreverência para que o humor seja estampado.

   Em outras postagens, teremos a análise de quatro cantigas medievais (inclusive a cantiga da Ribeirinha, a cantiga mais antiga em língua portuguesa será analisada), sempre relacionadas ao seu contexto de origem e com a aplicação prática a algo do nosso cotidiano.

Fernando Fernandes


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