Poética (Obra ‘Libertinagem’ - 1930)
Manuel Bandeira
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao Sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho verná-
culo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com
cem modelos e cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Nova Poética (Obra ‘Belo Belo’ - 1948)
Manuel Bandeira
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de csa com a roupa de brim branco muito
bem engomada, e na primeira esquina
passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa de brim:
fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfa, as vir-
gens cem por cento e as amadas que
envelheceram sem maldade.
Os dois poemas acima podem ser conectados entre si ou apresentam uma intertextualidade voltada para o fazer poético. Nesse sentido, podemos usar o termo metapoesia (poesia que trata sobre a maneira de se construir poesia). Mas que estratégias são apresentadas nos dois textos e que apontam para fazer?
Como já conversamos anteriormente via Google Meet ou pelas postagens, a Geração de 22 ratificou os pressupostos teóricos defendidos pelos artistas participantes da Semana de Arte Moderna. Na literatura, pregava-se que o texto literário deveria se desconectar do academicismo (gramática impecável, vocabulário rebuscado), do formalismo (rimas e métrica), do tom solene (temas não voltados para o cotidiano) e do aspecto contemplativo da arte (a arte que deve ser admirada, contemplada).
Os dois poemas acima apontam na direção de um novo fazer literário.
No primeiro poema, o eu lírico apresenta dois tipos de lirismo (fazer poético). Um deles é o lirismo comportado e esse perfil é associado ao tipo de trabalho em que a rotina é a base. O outro lirismo é aquele que foge da previsibilidade e da rotina e esse novo perfil proposto é associado à loucura, à bebedeira e aos clowns (no teatro, são personagens maquiados de forma extravagante e se comportam de maneira a subverter as convenções comportamentais).
O último verso sintetiza o desejo do eu lírico: - ‘Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.’ Isto é, o lirismo bem comportado metaforiza opressão, regulação, amarras.
No segundo poema, o eu lírico apresenta duas possibilidades de ação da poesia na vida das pessoas. A primeira é aquela que ele já sabe que existe e possui aspecto contemplativo, não agressivo, revigorante, metaforizado pelo orvalho e apropriado para o tipo de leitor que não deseja sair da zona de conforto. A segunda possibilidade de ação da poesia é aquela que causa algum tipo de desconforto ao leitor, desconforto esse metaforizado pelo imprevisto (no caso, algo que venha a manchar nossa roupa limpinha).
O diálogo entre os dois poemas ficou claro para você?
Os dois poemas apresentam de formas diferentes, porém, na mesma direção, uma nova possibilidade do fazer poético no sentido de abandonarem a arte contemplativa, comedida, bem regrada e comportada e buscarem uma arte que seja marcada pela espontaneidade e pelo desconforto.
Os dois poemas representam, na prática, a vontade dos Modernistas em apresentar algo novo em termos de literatura para o universo brasileiro.
Fernando Fernandes
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